O documento descreve as feiras semanais que aconteciam na cidade do autor quando criança. Ele gostava de observar as pessoas e barracas, em especial uma que vendia queijos e doces. No entanto, teve uma experiência traumática quando tentou furtar frutas de uma barraca e foi pego. O texto também menciona como a mãe do autor secava seus sapatos no forno quando estavam molhados e como levava para consertar quando furados.
1. A FEIRA
O dia de feira era um acontecimento importante na
semana, nesta cidade e nesta época de vidinha meio morna.
Na minha rua era sempre às quintas-feiras. Ela se estendia
por dois quarteirões da Santa Rita e mais um tanto da rua
Maranhão. Começava já de madrugada, com os caminhões
descarregando as barracas e os caixotes. Uma barulheira
infernal. Nós gostávamos de ficar apreciando aquele vai e vem
de gente, sentados nas muretas das casas, de olho nas meninas
que acompanhavam as mães (ou as avós). A Jó me conta que
muitas vezes foi com Vó Leonor à feira de manhã, e esta sempre
fazia se acompanhar por um secretário (geralmente do
Pindura-Saia) que ajeitava as compras dentro de um carrinho
de rolimã, e em troca recebia uma gorjeta. Certamente elas
passavam pela minha casa, e nenhum de nós poderia sonhar
que nossas vidas iriam se entrelaçar no futuro. Engraçado.
Eu gostava muito de uma barraca que vendia queijos do
Serro embrulhados em folha de bananeira, e um doce de leite
inesquecível. Minha mãe comprava sempre a quantidade
equivalente a uma marmita de alumínio, colocava na geladeira,
e eu comia em colheradas à tarde. Durava pouco.
Mas, foi nesta mesma feira das quintas-feiras que
aconteceu um fato traumatizante. Mancha negra da minha
infância, minha experiência precoce de furto. Seria uma
vocação ou um acidente de percurso? Como sempre diz o meu
amigo José Roberto Dias de Moura, “até hoje nunca alguém
quis me corromper...”. Pois é, a história é que eu vivia
namorando uma barraca com aquelas frutas importadas
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2. maravilhosas (seriam também deliciosas, imaginava eu), e
como éramos nacionalistas ferrenhos, importado lá em casa
só a velha geladeira GE. Nunca fazia parte da feira semanal
uma passada pela tal banca. Aí eu arquitetei, com toda a
experiência acumulada em cinco ou seis anos de vida, um golpe
a ser dado em cima do barraqueiro. Golpe infalível. Eu iria
acompanhar alguma freguesa, como se fosse o filho desta,
ficaria olhando as frutas com um olho e o barraqueiro com o
outro, no primeiro vacilo deste, pegaria um suculento cacho
de uvas argentinas, e daria no pé. Não podia haver falha neste
plano. Deve ser por aí que aparecem tantos ladrões neste
Brasil.
Planejada a ação, parti sozinho para a empreitada. Fui
até a barraca de frutas, fiquei examinando com aparente olhar
de intimidade todas aquelas frutas, e saí, como diz a música
de Compay Segundo, “con su pasito apurado”, e coração
batendo a umas 200 bpm. Só não contava com o nascente
corporativismo. O barraqueiro ao lado achou muito estranho
aquele menino sair assim, sem mais esta nem aquela, com um
cacho de uva sem embrulhar.
Feita a denúncia, lá foi em meu encalço o infeliz dono
da barraca de frutas. E eu sem saber de nada. Fui até o portão
da minha casa, sentei-me calmamente, e já me preparava para
saborear o fruto do meu saque (literalmente), quando este é
arrancado das minhas mãos sem uma palavra. Fiquei
paralisado. E ainda por cima me deixou com a boca cheia de
saliva. Pode?
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3. SAPATO FURADO
Não havia jeito. Chovia, meus pés ficavam molhados.
Não que fosse totalmente ruim, andar pela enxurrada nas ruas
de pedra, fazer barragens, e soltar barquinhos de papel que
desciam a rua até encalhar na esquina, perto da casa dos
Gomes Freire.
Mas ir para o Grupo de sapato furado era humilhante.
Molhava a meia e dava um certo ar de decadência, com a
qual eu não concordava. Minha mãe tinha uma solução
providencial para dias de chuva. Colocava os sapatos no forno
do fogão para secar, de maneira que cedinho eles estariam
prontos para uma nova jornada pela rua Santa Rita Durão
abaixo. O único medo que eu tinha é que eles ficassem torrados.
Mas, se já eram pretos, pior não poderiam ficar.
Quando eu reclamava de um prego machucando meu
pé, minha mãe dizia: “Leva no Barçante”. Seu Barçante
mantinha sua banca de sapateiro na própria casa em que
morava com a família, ali na rua Cláudio Manuel, e trabalhava
com o filho. A gente chegava de mansinho, com o sapato
embrulhado em jornal e pedia para consertar. Ele rabiscava
qualquer coisa (acho que era o número da minha casa) na
sola, e dizia “depois de amanhã”. Não precisava dizer de
onde era. Ele sabia. Aliás, essa era uma característica notável
daquele tempo. Os meninos não precisavam falar nada, e
muitas vezes nem pagar. Depois alguém ia lá e acertava. A
gente era conhecido de todo mundo. Eu tenho a impressão
que a sociedade funcionava melhor, sem dinheiro. Não tinha
problema cambial, nem inflação, nem desvalorização, nem
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4. roubo. Era só dizer “bota na conta”, e estava resolvido. Naquela
época eu achava que tudo se resolvia num aperto de mão.
Nunca tinha visto dinheiro circular. Banco então, nem pensar.
Como naquele tempo havia o Banco da Lavoura ali na Praça
Sete (o meu padrinho Aristeu até me deu um cofrinho para
coletar as raras moedas), para mim esta coisa de dinheiro em
banco deveria estar relacionada com fazenda, produção
agrícola, sei lá. Quando nós íamos comprar alguma coisa na
farmácia do seu Castro (que depois virou Cristo Rei), ali na
praça Doze, nem era preciso dizer o nome do remédio. Ele
olhava o bilhete da minha mãe, embrulhava e já botava na
conta. Fim do mês apareciam as notinhas e um total na caixa
do correio, era só passar lá e pagar. Muito tranqüilo.
Mas, voltando aos sapatos, quando eles furavam a sola,
o que devia acontecer de dois em dois meses, pela atividade
insana a que eram submetidos, e chovia, a solução
desenvolvida por minha mãe era dobrar umas folhas de jornal
e colocar por dentro, para proteger a meia. Então, lá ia eu,
pasta de couro nas mãos, em direção ao Grupo, com sapato
de sola de jornal. Morria de vergonha. Por que os pais teimam
em matar os filhos de vergonha?
No Grupo, escondia os pés. No recreio, nada de ficar
mostrando a sola do sapato assim sem essa nem aquela. Se
Dona Natália Lessa chamasse para a ginástica, o jeito era
alegar resfriado, para ficar só olhando. Já imaginou? Se alguém
me vê de sapato com sola de jornal, eu estaria perdido. Hoje
penso que era uma solução bastante criativa para o problema
dos pés. Os sapatos deveriam ficar mais leves e mais macios
do que com sola de couro. As minhas filhas, quando conto
isso, acham um absurdo. Opinião de meninas criadas em outro
mundo. Shinobu Kasahara, que me contou ter tido esta mesma
experiência em Campinas, certamente concorda comigo.
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