SlideShare une entreprise Scribd logo
1  sur  4
Télécharger pour lire hors ligne
A FEIRA




      O dia de feira era um acontecimento importante na
semana, nesta cidade e nesta época de vidinha meio morna.
Na minha rua era sempre às quintas-feiras. Ela se estendia
por dois quarteirões da Santa Rita e mais um tanto da rua
Maranhão. Começava já de madrugada, com os caminhões
descarregando as barracas e os caixotes. Uma barulheira
infernal. Nós gostávamos de ficar apreciando aquele vai e vem
de gente, sentados nas muretas das casas, de olho nas meninas
que acompanhavam as mães (ou as avós). A Jó me conta que
muitas vezes foi com Vó Leonor à feira de manhã, e esta sempre
fazia se acompanhar por um secretário (geralmente do
Pindura-Saia) que ajeitava as compras dentro de um carrinho
de rolimã, e em troca recebia uma gorjeta. Certamente elas
passavam pela minha casa, e nenhum de nós poderia sonhar
que nossas vidas iriam se entrelaçar no futuro. Engraçado.
      Eu gostava muito de uma barraca que vendia queijos do
Serro embrulhados em folha de bananeira, e um doce de leite
inesquecível. Minha mãe comprava sempre a quantidade
equivalente a uma marmita de alumínio, colocava na geladeira,
e eu comia em colheradas à tarde. Durava pouco.
      Mas, foi nesta mesma feira das quintas-feiras que
aconteceu um fato traumatizante. Mancha negra da minha
infância, minha experiência precoce de furto. Seria uma
vocação ou um acidente de percurso? Como sempre diz o meu
amigo José Roberto Dias de Moura, “até hoje nunca alguém
quis me corromper...”. Pois é, a história é que eu vivia
namorando uma barraca com aquelas frutas importadas


                                           29
maravilhosas (seriam também deliciosas, imaginava eu), e
como éramos nacionalistas ferrenhos, importado lá em casa
só a velha geladeira GE. Nunca fazia parte da feira semanal
uma passada pela tal banca. Aí eu arquitetei, com toda a
experiência acumulada em cinco ou seis anos de vida, um golpe
a ser dado em cima do barraqueiro. Golpe infalível. Eu iria
acompanhar alguma freguesa, como se fosse o filho desta,
ficaria olhando as frutas com um olho e o barraqueiro com o
outro, no primeiro vacilo deste, pegaria um suculento cacho
de uvas argentinas, e daria no pé. Não podia haver falha neste
plano. Deve ser por aí que aparecem tantos ladrões neste
Brasil.
       Planejada a ação, parti sozinho para a empreitada. Fui
até a barraca de frutas, fiquei examinando com aparente olhar
de intimidade todas aquelas frutas, e saí, como diz a música
de Compay Segundo, “con su pasito apurado”, e coração
batendo a umas 200 bpm. Só não contava com o nascente
corporativismo. O barraqueiro ao lado achou muito estranho
aquele menino sair assim, sem mais esta nem aquela, com um
cacho de uva sem embrulhar.
       Feita a denúncia, lá foi em meu encalço o infeliz dono
da barraca de frutas. E eu sem saber de nada. Fui até o portão
da minha casa, sentei-me calmamente, e já me preparava para
saborear o fruto do meu saque (literalmente), quando este é
arrancado das minhas mãos sem uma palavra. Fiquei
paralisado. E ainda por cima me deixou com a boca cheia de
saliva. Pode?




                30
SAPATO FURADO




      Não havia jeito. Chovia, meus pés ficavam molhados.
Não que fosse totalmente ruim, andar pela enxurrada nas ruas
de pedra, fazer barragens, e soltar barquinhos de papel que
desciam a rua até encalhar na esquina, perto da casa dos
Gomes Freire.
      Mas ir para o Grupo de sapato furado era humilhante.
Molhava a meia e dava um certo ar de decadência, com a
qual eu não concordava. Minha mãe tinha uma solução
providencial para dias de chuva. Colocava os sapatos no forno
do fogão para secar, de maneira que cedinho eles estariam
prontos para uma nova jornada pela rua Santa Rita Durão
abaixo. O único medo que eu tinha é que eles ficassem torrados.
Mas, se já eram pretos, pior não poderiam ficar.
      Quando eu reclamava de um prego machucando meu
pé, minha mãe dizia: “Leva no Barçante”. Seu Barçante
mantinha sua banca de sapateiro na própria casa em que
morava com a família, ali na rua Cláudio Manuel, e trabalhava
com o filho. A gente chegava de mansinho, com o sapato
embrulhado em jornal e pedia para consertar. Ele rabiscava
qualquer coisa (acho que era o número da minha casa) na
sola, e dizia “depois de amanhã”. Não precisava dizer de
onde era. Ele sabia. Aliás, essa era uma característica notável
daquele tempo. Os meninos não precisavam falar nada, e
muitas vezes nem pagar. Depois alguém ia lá e acertava. A
gente era conhecido de todo mundo. Eu tenho a impressão
que a sociedade funcionava melhor, sem dinheiro. Não tinha
problema cambial, nem inflação, nem desvalorização, nem


                                           31
roubo. Era só dizer “bota na conta”, e estava resolvido. Naquela
época eu achava que tudo se resolvia num aperto de mão.
Nunca tinha visto dinheiro circular. Banco então, nem pensar.
Como naquele tempo havia o Banco da Lavoura ali na Praça
Sete (o meu padrinho Aristeu até me deu um cofrinho para
coletar as raras moedas), para mim esta coisa de dinheiro em
banco deveria estar relacionada com fazenda, produção
agrícola, sei lá. Quando nós íamos comprar alguma coisa na
farmácia do seu Castro (que depois virou Cristo Rei), ali na
praça Doze, nem era preciso dizer o nome do remédio. Ele
olhava o bilhete da minha mãe, embrulhava e já botava na
conta. Fim do mês apareciam as notinhas e um total na caixa
do correio, era só passar lá e pagar. Muito tranqüilo.
       Mas, voltando aos sapatos, quando eles furavam a sola,
o que devia acontecer de dois em dois meses, pela atividade
insana a que eram submetidos, e chovia, a solução
desenvolvida por minha mãe era dobrar umas folhas de jornal
e colocar por dentro, para proteger a meia. Então, lá ia eu,
pasta de couro nas mãos, em direção ao Grupo, com sapato
de sola de jornal. Morria de vergonha. Por que os pais teimam
em matar os filhos de vergonha?
       No Grupo, escondia os pés. No recreio, nada de ficar
mostrando a sola do sapato assim sem essa nem aquela. Se
Dona Natália Lessa chamasse para a ginástica, o jeito era
alegar resfriado, para ficar só olhando. Já imaginou? Se alguém
me vê de sapato com sola de jornal, eu estaria perdido. Hoje
penso que era uma solução bastante criativa para o problema
dos pés. Os sapatos deveriam ficar mais leves e mais macios
do que com sola de couro. As minhas filhas, quando conto
isso, acham um absurdo. Opinião de meninas criadas em outro
mundo. Shinobu Kasahara, que me contou ter tido esta mesma
experiência em Campinas, certamente concorda comigo.




                 32

Contenu connexe

Tendances (18)

Banda desenhada Maria Castanha
Banda desenhada Maria CastanhaBanda desenhada Maria Castanha
Banda desenhada Maria Castanha
 
Maria castanha
Maria castanhaMaria castanha
Maria castanha
 
Hist maria cast
Hist maria castHist maria cast
Hist maria cast
 
História da Maria Castanha
História da Maria CastanhaHistória da Maria Castanha
História da Maria Castanha
 
Sabonete E SabãO
Sabonete E SabãOSabonete E SabãO
Sabonete E SabãO
 
Apresentação
ApresentaçãoApresentação
Apresentação
 
A Maria Castanha
A Maria CastanhaA Maria Castanha
A Maria Castanha
 
Hist maria cast[1]
Hist maria cast[1]Hist maria cast[1]
Hist maria cast[1]
 
Saboneteesabo 090917102749-phpapp02
Saboneteesabo 090917102749-phpapp02Saboneteesabo 090917102749-phpapp02
Saboneteesabo 090917102749-phpapp02
 
Palhaço biduim ppt
Palhaço biduim pptPalhaço biduim ppt
Palhaço biduim ppt
 
A historia da maria castanha
A historia da maria castanhaA historia da maria castanha
A historia da maria castanha
 
Ah minha infancia
Ah minha infanciaAh minha infancia
Ah minha infancia
 
Banda desenhada a galinha-ruiva
Banda desenhada  a galinha-ruivaBanda desenhada  a galinha-ruiva
Banda desenhada a galinha-ruiva
 
Projecto Ti Venturinha 2008
Projecto Ti Venturinha 2008Projecto Ti Venturinha 2008
Projecto Ti Venturinha 2008
 
Ah minha infancia
Ah minha infanciaAh minha infancia
Ah minha infancia
 
A galinha ruiva
A galinha ruivaA galinha ruiva
A galinha ruiva
 
Maria castanha
Maria castanhaMaria castanha
Maria castanha
 
Lengalengas
LengalengasLengalengas
Lengalengas
 

En vedette

Trabajofinaldiazmaria rs41
Trabajofinaldiazmaria rs41Trabajofinaldiazmaria rs41
Trabajofinaldiazmaria rs41Maria Diaz
 
Impacto social de la nueva tegnologia
Impacto social de la nueva tegnologiaImpacto social de la nueva tegnologia
Impacto social de la nueva tegnologiasaia2013
 
Animacion sencilla tellez
Animacion sencilla tellezAnimacion sencilla tellez
Animacion sencilla tellez9122019
 
Exposición
ExposiciónExposición
Exposición4equipo
 
Datos personales 2
Datos personales 2Datos personales 2
Datos personales 2ana-ma
 
Atividade primeiro capítulo - mapa conceitual
Atividade   primeiro capítulo - mapa conceitualAtividade   primeiro capítulo - mapa conceitual
Atividade primeiro capítulo - mapa conceitualPedro Henrique
 
Conceptos de la web 2.0
Conceptos de la web 2.0Conceptos de la web 2.0
Conceptos de la web 2.0corposucre
 
Tecnologías web 2.0 presentación 1
Tecnologías web 2.0 presentación 1Tecnologías web 2.0 presentación 1
Tecnologías web 2.0 presentación 1Stephany Lemos
 
De qué está compuesta la materia (2)
De qué está compuesta la materia (2)De qué está compuesta la materia (2)
De qué está compuesta la materia (2)TaniaGonzalez2000
 
Relaciones dentro de la web 2.0
Relaciones dentro de la web 2.0Relaciones dentro de la web 2.0
Relaciones dentro de la web 2.0natigoru
 

En vedette (20)

Amigos del alma
Amigos del almaAmigos del alma
Amigos del alma
 
Trabajofinaldiazmaria rs41
Trabajofinaldiazmaria rs41Trabajofinaldiazmaria rs41
Trabajofinaldiazmaria rs41
 
Impacto social de la nueva tegnologia
Impacto social de la nueva tegnologiaImpacto social de la nueva tegnologia
Impacto social de la nueva tegnologia
 
Animacion sencilla tellez
Animacion sencilla tellezAnimacion sencilla tellez
Animacion sencilla tellez
 
Exposición
ExposiciónExposición
Exposición
 
Guion docente 4
Guion docente 4Guion docente 4
Guion docente 4
 
Guía 4 original
Guía 4 originalGuía 4 original
Guía 4 original
 
Alpha green1
Alpha green1Alpha green1
Alpha green1
 
Datos personales 2
Datos personales 2Datos personales 2
Datos personales 2
 
Publicación6
Publicación6Publicación6
Publicación6
 
Atividade primeiro capítulo - mapa conceitual
Atividade   primeiro capítulo - mapa conceitualAtividade   primeiro capítulo - mapa conceitual
Atividade primeiro capítulo - mapa conceitual
 
Conceptos de la web 2.0
Conceptos de la web 2.0Conceptos de la web 2.0
Conceptos de la web 2.0
 
Tecnologías web 2.0 presentación 1
Tecnologías web 2.0 presentación 1Tecnologías web 2.0 presentación 1
Tecnologías web 2.0 presentación 1
 
Yo soy la web 2.0
Yo soy la web 2.0Yo soy la web 2.0
Yo soy la web 2.0
 
De qué está compuesta la materia (2)
De qué está compuesta la materia (2)De qué está compuesta la materia (2)
De qué está compuesta la materia (2)
 
Eucarist
EucaristEucarist
Eucarist
 
Programa de Procesos
Programa de ProcesosPrograma de Procesos
Programa de Procesos
 
P c s plus_
P c s plus_P c s plus_
P c s plus_
 
Logo (2)
Logo (2)Logo (2)
Logo (2)
 
Relaciones dentro de la web 2.0
Relaciones dentro de la web 2.0Relaciones dentro de la web 2.0
Relaciones dentro de la web 2.0
 

Similaire à Livro armazem colombo parte

Familia paterna os genuinos
Familia paterna os genuinosFamilia paterna os genuinos
Familia paterna os genuinosPitágoras
 
"Comprar, comprar, comprar" de Luísa Ducla Soares
"Comprar, comprar, comprar" de Luísa Ducla Soares"Comprar, comprar, comprar" de Luísa Ducla Soares
"Comprar, comprar, comprar" de Luísa Ducla SoaresCentral Didática
 
O-Menino-no-Espelho-Fernando-Sabino.pdf
O-Menino-no-Espelho-Fernando-Sabino.pdfO-Menino-no-Espelho-Fernando-Sabino.pdf
O-Menino-no-Espelho-Fernando-Sabino.pdfAldneideAlmeida1
 
52 rei dos canudos para site1
52 rei dos canudos para site152 rei dos canudos para site1
52 rei dos canudos para site1Vanessa Reis
 
O REI DOS CANUDINHOS
O REI DOS CANUDINHOSO REI DOS CANUDINHOS
O REI DOS CANUDINHOSMarisa Seara
 
8 Tem Alguém Aí - Marian Keyes.pdf
8 Tem Alguém Aí - Marian Keyes.pdf8 Tem Alguém Aí - Marian Keyes.pdf
8 Tem Alguém Aí - Marian Keyes.pdfGretilianemariano
 
As minhas estórias do meu bairro
As minhas estórias do meu bairroAs minhas estórias do meu bairro
As minhas estórias do meu bairroSandra Moreira
 
Analise socio-historica da comunidade caicara de Conceicaozinha - Guaruja
Analise socio-historica da comunidade caicara de Conceicaozinha - GuarujaAnalise socio-historica da comunidade caicara de Conceicaozinha - Guaruja
Analise socio-historica da comunidade caicara de Conceicaozinha - GuarujaColetivo Alternativa Verde
 
Crônicas selecionadas nu, de botas - av2
Crônicas selecionadas   nu, de botas - av2Crônicas selecionadas   nu, de botas - av2
Crônicas selecionadas nu, de botas - av2Josi Motta
 
Crônicas selecionadas nu, de botas - av1
Crônicas selecionadas   nu, de botas - av1Crônicas selecionadas   nu, de botas - av1
Crônicas selecionadas nu, de botas - av1Josi Motta
 
A Maria Castanha
A Maria CastanhaA Maria Castanha
A Maria Castanhaguest0059a9
 
Artesanato de palavras - Lucas Miguel Teixeira
Artesanato de palavras - Lucas Miguel TeixeiraArtesanato de palavras - Lucas Miguel Teixeira
Artesanato de palavras - Lucas Miguel TeixeiraSaulo Matias
 
Anos 60--70--80-6873
Anos 60--70--80-6873Anos 60--70--80-6873
Anos 60--70--80-6873Joelma Salles
 

Similaire à Livro armazem colombo parte (20)

Nostalgias à velha casa
Nostalgias à velha casa  Nostalgias à velha casa
Nostalgias à velha casa
 
Familia paterna os genuinos
Familia paterna os genuinosFamilia paterna os genuinos
Familia paterna os genuinos
 
Presente para Jesus
Presente para JesusPresente para Jesus
Presente para Jesus
 
Vila criança
Vila criançaVila criança
Vila criança
 
"Comprar, comprar, comprar" de Luísa Ducla Soares
"Comprar, comprar, comprar" de Luísa Ducla Soares"Comprar, comprar, comprar" de Luísa Ducla Soares
"Comprar, comprar, comprar" de Luísa Ducla Soares
 
Natal presente de aniversario
Natal presente de aniversarioNatal presente de aniversario
Natal presente de aniversario
 
O-Menino-no-Espelho-Fernando-Sabino.pdf
O-Menino-no-Espelho-Fernando-Sabino.pdfO-Menino-no-Espelho-Fernando-Sabino.pdf
O-Menino-no-Espelho-Fernando-Sabino.pdf
 
Carta para belém
Carta para belémCarta para belém
Carta para belém
 
52 rei dos canudos para site1
52 rei dos canudos para site152 rei dos canudos para site1
52 rei dos canudos para site1
 
O REI DOS CANUDINHOS
O REI DOS CANUDINHOSO REI DOS CANUDINHOS
O REI DOS CANUDINHOS
 
8 Tem Alguém Aí - Marian Keyes.pdf
8 Tem Alguém Aí - Marian Keyes.pdf8 Tem Alguém Aí - Marian Keyes.pdf
8 Tem Alguém Aí - Marian Keyes.pdf
 
As minhas estórias do meu bairro
As minhas estórias do meu bairroAs minhas estórias do meu bairro
As minhas estórias do meu bairro
 
Analise socio-historica da comunidade caicara de Conceicaozinha - Guaruja
Analise socio-historica da comunidade caicara de Conceicaozinha - GuarujaAnalise socio-historica da comunidade caicara de Conceicaozinha - Guaruja
Analise socio-historica da comunidade caicara de Conceicaozinha - Guaruja
 
Crônicas selecionadas nu, de botas - av2
Crônicas selecionadas   nu, de botas - av2Crônicas selecionadas   nu, de botas - av2
Crônicas selecionadas nu, de botas - av2
 
Crônicas selecionadas nu, de botas - av1
Crônicas selecionadas   nu, de botas - av1Crônicas selecionadas   nu, de botas - av1
Crônicas selecionadas nu, de botas - av1
 
A Maria Castanha
A Maria CastanhaA Maria Castanha
A Maria Castanha
 
Bom crioulo
Bom criouloBom crioulo
Bom crioulo
 
Artesanato de palavras - Lucas Miguel Teixeira
Artesanato de palavras - Lucas Miguel TeixeiraArtesanato de palavras - Lucas Miguel Teixeira
Artesanato de palavras - Lucas Miguel Teixeira
 
Anos 60--70--80-6873
Anos 60--70--80-6873Anos 60--70--80-6873
Anos 60--70--80-6873
 
Conto-meu tio jules
Conto-meu tio julesConto-meu tio jules
Conto-meu tio jules
 

Livro armazem colombo parte

  • 1. A FEIRA O dia de feira era um acontecimento importante na semana, nesta cidade e nesta época de vidinha meio morna. Na minha rua era sempre às quintas-feiras. Ela se estendia por dois quarteirões da Santa Rita e mais um tanto da rua Maranhão. Começava já de madrugada, com os caminhões descarregando as barracas e os caixotes. Uma barulheira infernal. Nós gostávamos de ficar apreciando aquele vai e vem de gente, sentados nas muretas das casas, de olho nas meninas que acompanhavam as mães (ou as avós). A Jó me conta que muitas vezes foi com Vó Leonor à feira de manhã, e esta sempre fazia se acompanhar por um secretário (geralmente do Pindura-Saia) que ajeitava as compras dentro de um carrinho de rolimã, e em troca recebia uma gorjeta. Certamente elas passavam pela minha casa, e nenhum de nós poderia sonhar que nossas vidas iriam se entrelaçar no futuro. Engraçado. Eu gostava muito de uma barraca que vendia queijos do Serro embrulhados em folha de bananeira, e um doce de leite inesquecível. Minha mãe comprava sempre a quantidade equivalente a uma marmita de alumínio, colocava na geladeira, e eu comia em colheradas à tarde. Durava pouco. Mas, foi nesta mesma feira das quintas-feiras que aconteceu um fato traumatizante. Mancha negra da minha infância, minha experiência precoce de furto. Seria uma vocação ou um acidente de percurso? Como sempre diz o meu amigo José Roberto Dias de Moura, “até hoje nunca alguém quis me corromper...”. Pois é, a história é que eu vivia namorando uma barraca com aquelas frutas importadas 29
  • 2. maravilhosas (seriam também deliciosas, imaginava eu), e como éramos nacionalistas ferrenhos, importado lá em casa só a velha geladeira GE. Nunca fazia parte da feira semanal uma passada pela tal banca. Aí eu arquitetei, com toda a experiência acumulada em cinco ou seis anos de vida, um golpe a ser dado em cima do barraqueiro. Golpe infalível. Eu iria acompanhar alguma freguesa, como se fosse o filho desta, ficaria olhando as frutas com um olho e o barraqueiro com o outro, no primeiro vacilo deste, pegaria um suculento cacho de uvas argentinas, e daria no pé. Não podia haver falha neste plano. Deve ser por aí que aparecem tantos ladrões neste Brasil. Planejada a ação, parti sozinho para a empreitada. Fui até a barraca de frutas, fiquei examinando com aparente olhar de intimidade todas aquelas frutas, e saí, como diz a música de Compay Segundo, “con su pasito apurado”, e coração batendo a umas 200 bpm. Só não contava com o nascente corporativismo. O barraqueiro ao lado achou muito estranho aquele menino sair assim, sem mais esta nem aquela, com um cacho de uva sem embrulhar. Feita a denúncia, lá foi em meu encalço o infeliz dono da barraca de frutas. E eu sem saber de nada. Fui até o portão da minha casa, sentei-me calmamente, e já me preparava para saborear o fruto do meu saque (literalmente), quando este é arrancado das minhas mãos sem uma palavra. Fiquei paralisado. E ainda por cima me deixou com a boca cheia de saliva. Pode? 30
  • 3. SAPATO FURADO Não havia jeito. Chovia, meus pés ficavam molhados. Não que fosse totalmente ruim, andar pela enxurrada nas ruas de pedra, fazer barragens, e soltar barquinhos de papel que desciam a rua até encalhar na esquina, perto da casa dos Gomes Freire. Mas ir para o Grupo de sapato furado era humilhante. Molhava a meia e dava um certo ar de decadência, com a qual eu não concordava. Minha mãe tinha uma solução providencial para dias de chuva. Colocava os sapatos no forno do fogão para secar, de maneira que cedinho eles estariam prontos para uma nova jornada pela rua Santa Rita Durão abaixo. O único medo que eu tinha é que eles ficassem torrados. Mas, se já eram pretos, pior não poderiam ficar. Quando eu reclamava de um prego machucando meu pé, minha mãe dizia: “Leva no Barçante”. Seu Barçante mantinha sua banca de sapateiro na própria casa em que morava com a família, ali na rua Cláudio Manuel, e trabalhava com o filho. A gente chegava de mansinho, com o sapato embrulhado em jornal e pedia para consertar. Ele rabiscava qualquer coisa (acho que era o número da minha casa) na sola, e dizia “depois de amanhã”. Não precisava dizer de onde era. Ele sabia. Aliás, essa era uma característica notável daquele tempo. Os meninos não precisavam falar nada, e muitas vezes nem pagar. Depois alguém ia lá e acertava. A gente era conhecido de todo mundo. Eu tenho a impressão que a sociedade funcionava melhor, sem dinheiro. Não tinha problema cambial, nem inflação, nem desvalorização, nem 31
  • 4. roubo. Era só dizer “bota na conta”, e estava resolvido. Naquela época eu achava que tudo se resolvia num aperto de mão. Nunca tinha visto dinheiro circular. Banco então, nem pensar. Como naquele tempo havia o Banco da Lavoura ali na Praça Sete (o meu padrinho Aristeu até me deu um cofrinho para coletar as raras moedas), para mim esta coisa de dinheiro em banco deveria estar relacionada com fazenda, produção agrícola, sei lá. Quando nós íamos comprar alguma coisa na farmácia do seu Castro (que depois virou Cristo Rei), ali na praça Doze, nem era preciso dizer o nome do remédio. Ele olhava o bilhete da minha mãe, embrulhava e já botava na conta. Fim do mês apareciam as notinhas e um total na caixa do correio, era só passar lá e pagar. Muito tranqüilo. Mas, voltando aos sapatos, quando eles furavam a sola, o que devia acontecer de dois em dois meses, pela atividade insana a que eram submetidos, e chovia, a solução desenvolvida por minha mãe era dobrar umas folhas de jornal e colocar por dentro, para proteger a meia. Então, lá ia eu, pasta de couro nas mãos, em direção ao Grupo, com sapato de sola de jornal. Morria de vergonha. Por que os pais teimam em matar os filhos de vergonha? No Grupo, escondia os pés. No recreio, nada de ficar mostrando a sola do sapato assim sem essa nem aquela. Se Dona Natália Lessa chamasse para a ginástica, o jeito era alegar resfriado, para ficar só olhando. Já imaginou? Se alguém me vê de sapato com sola de jornal, eu estaria perdido. Hoje penso que era uma solução bastante criativa para o problema dos pés. Os sapatos deveriam ficar mais leves e mais macios do que com sola de couro. As minhas filhas, quando conto isso, acham um absurdo. Opinião de meninas criadas em outro mundo. Shinobu Kasahara, que me contou ter tido esta mesma experiência em Campinas, certamente concorda comigo. 32