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# Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações #

                    Gestão Social do Território: Entre a Ideologia e a Utopia

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                                                                            Rosinha Machado Carrion

Resumo:
Busca-se no presente artigo contribuir para a reflexão a respeito das “interfaces e delimitações
entre a gestão pública e a gestão social”, questionando-se o caráter ideológico de ambas, em seus
“conceitos e práticas”. Diante da impossibilidade de separar administração e política, o estudo
apresenta a Gestão Social como um processo dialético, com sua imediaticidade, suas mediações e
suas superações. O trabalho está dividido em duas grandes partes. Na parte teórica, discute-se o
conceito de ideologia e suas implicações. Na parte empírica, utiliza-se uma pesquisa que vem
sendo realizada desde 2007 no bairro Arquipélago em Porto Alegre. Ela procura analisar as
mediações da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e de uma ONG. Dentre outras constatações,
verifica-se que o território é um espaço privilegiado para superar as concepções ideológicas e
pensar a “gestão social como gestão pública não estatal”.
Palavras-chave: Gestão Social; Ideologia; Utopia.
Temática 1: Gestão Social e Políticas Públicas
Introdução
    Em 2005, um debate entre Ana Paula Paes de Paula e Luis Carlos Bresser-Pereira confrontou
duas concepções de administração pública. De um lado, a idéia de uma “administração pública
gerencial”, ou “gestão pública”, como sendo uma maneira de organizar e administrar o Estado,
oposta à “burocracia” e voltada a “resultados” (BRESSER PEREIRA, 2005). De outro, a
“administração pública societal”, como uma esfera pública não-estatal, intimamente relacionada
com a criação de espaços públicos de negociação e espaços deliberativos (PAULA, 2005a).
Enquanto Bresser Pereira (2005) considera esta última muito mais como uma forma de governo
(democracia participativa) do que uma forma de gestão (sendo que ambas poderiam ser
combinadas em uma “administração pública gerencial social”), Paes de Paula (2005b), acredita
que o próprio fato de se ter uma administração pública gerencialista demonstra que ela “não
partilha do mesmo repertório de crenças e práticas da gestão social” (p. 52). O debate trouxe à
tona uma importante questãoi: “é possível separar administração e política”?
    Muitos podem ter pensado que a posição de um ou de outro autor, ou mesmo o próprio debate
em si, tinha um forte conteúdo ideológico. Mas é bom lembrar que Tragtemberg (2008) já
afirmava ser a própria teoria de Administração ideológica pelo fato de que algumas correntes
aspirarem à condição de dominantes em face do interesse de determinadas classes ou grupos. A
ideologia é, portanto, um fenômeno que deve ser considerado por quem pretende estudar a Gestão
Social, já que seus efeitos são capazes de imiscuir-se no próprio objeto de estudo. Assim sendo, a
propósito de refletir sobre as “interfaces e delimitações entre a gestão pública e a gestão social”, é
oportuno questionar sobre o caráter ideológico de ambas, em seus “conceitos e práticas”.
        Conceitualmente, a Gestão Social seria a tentativa de substituir a gestão tecnoburocrática
(monológica) por um gerenciamento mais participativo (dialógico), no qual o processo decisório é
exercido por meio de diferentes sujeitos sociais (ALVES, et al., 2008). De um ponto de vista
deontológico (ou utópico), a Gestão Social não deveria ser sinônimo de transposição dos
princípios e postulados da gestão de negócios para o campo social. Portanto, seu fundamento
epistemológico deveria ser oposto ao da teoria tradicional, orientando-se, sobretudo, para a
intersubjetividade-dialogicidade (CARRION, 2007; TENÓRIO, 2002); rejeitando as “fórmulas do
management”; e tentando “contemplar as peculiaridades culturais locais e as demandas de

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# Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações #

participação popular” (PAULA, 2005b, p. 52). Na prática, o que se verifica, em alguns casos, é a
gestão do social, caracterizada pela presença do Estado-mínimo nas políticas sociais (TENÓRIO,
2002); e pelo deslocamento dos eixos de coordenação das ações coletivas da sociedade civil para
os gabinetes e secretarias do poder estatal (GOHN, 2008).
        Diante disso, um dos objetivos do presente trabalho é apresentar a Gestão Social não como
algo dado, mas um processo dialético, com sua imediaticidade, suas mediações e suas superações.
Outro objetivo, associado à temática deste fórum, é afirmar o território como lócus privilegiado
para superar as concepções ideológicas e pensar a “gestão social como gestão pública não estatal”.
O artigo tem como base uma pesquisa que vem sendo realizada desde 2007 no bairro Arquipélago
em Porto Alegre. Ele procura analisar duas mediações que ali ocorrem, consideradas as mais
relevantes: a mediação da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e a mediação de uma ONG. A
análise dos elementos coletados seguiu a orientação dialético-hermenêutica (MINAYO, 1999), a
qual considera tanto o contexto sócio-histórico do território, quanto os fatos surgidos durante a
investigação.
        O trabalho está dividido em duas grandes partes: uma teórica, em que se discute o conceito
de ideologia e suas implicações; outra empírica em que é descrito o território, suas organizações e
as mediações que ali ocorrem. Na seção final, em um esforço de síntese entre a teoria e a pesquisa
empírica, são apresentadas as principais implicações para a Gestão Social.
Ideologia, Utopia e Realidade
        Uma das primeiras definições de ideologia remonta à França do Século XIX, quando era
utilizada por Cabanis, Destutt de Tracy e seus amigos para significar a teoria das idéias,
entendidas como interação entre o organismo e a natureza (ALTHUSSER, 2001; LÖWY, 2008).
Mas seu sentido teria sido mudado por Napoleão quando, em um discurso, teria atacado o próprio
Destutt de Tracy e seus amigos, os chamando de “ideólogos” – no sentido de quem vive em um
mundo especulativo, que ignora a realidade (LÖWY, 2008).
        Outra origem possível associa-se à idéia de idola do filósofo Francis Bacon, para quem os
ídolos eram “fantasmas” ou “pré-concepções” (ídolos da tribo, da caverna, do mercado e do
teatro), todos eles fontes de erro e obstáculos no caminho do conhecimento verdadeiro e da
instauração das ciências (MANNHEIM, 1972). É nesse sentido pejorativo que Marx, em A
Ideologia Alemã, irá utilizar o conceito, como equivalente à ilusão e falsa consciência (LÖWY,
2008). Já com Lênin o conceito ganha um tom mais abrangente, como qualquer concepção da
realidade social ou doutrina política, vinculada a interesses de certas classes sociais – burguesia ou
proletariado (LÖWY, 2008). Essa idéia mais ampla de ideologia é encontrada também na obra de
Karl Mannheim, o qual procura dar-lhe um caráter mais analítico.
        Para Mannheim (1972), a dissolução gradativa de uma “visão de mundo objetiva unitária”
resultou de uma pluralidade de concepções do mundo divergentes, fazendo com que surgisse a
tendência para desmascarar as “motivações inconscientes do pensamento grupal”. Esta
“intensificação final da crise intelectual pode ser caracterizada pelos dois conceitos do tipo slogan
‘ideologia e utopia’” que, “devido à sua importância simbólica”, foram escolhidos para o título da
obra do autor (MANNHEIM, 1972, p. 66).
        A ideologia tem a ver com estabilidade e manutenção do status quo; diz respeito a grupos
dominantes que se tornam, em seu pensar, “tão intensamente ligados por interesse a uma situação
que simplesmente não são capazes de ver certos fatos que iriam solapar seu senso de dominação”
(MANNHEIM, 1972, p. 66). Já a visão utópica é essencialmente crítica, pretende algo ainda não
realizado. Já a utopia
                          reflete a descoberta [...] de que certos grupos oprimidos estão intelectualmente tão
                          firmemente interessados na destruição e na transformação de uma dada condição da
                          sociedade que, mesmo involuntariamente, somente vêem na situação elementos que

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                          tendem a negá-la. Seu pensamento é incapaz de diagnosticar corretamente uma situação
                          existente na sociedade. Eles não estão absolutamente preocupados com o que realmente
                          existe; antes, em seu pensamento, buscam logo mudar a situação existente (p. 67)
        Löwy (2008) percebe nos conceitos de ideologia e utopia de Mannheim duas formas de um
mesmo fenômeno, o qual pode ser chamado de “visão social de mundo”. Este se caracteriza pela
existência de um conjunto estrutural e orgânico de idéias, de representações, teorias e doutrinas,
que são expressões de interesses sociais de grupos ou classes (LÖWY, 2008, p. 17).
        Mannheim (1972) afirma que tanto a ideologia quanto a utopia são incapazes de “ver” o
real em todos os seus aspectos. São estilos de pensamento socialmente condicionados, ou
estruturas de consciência que determinam a nossa maneira de conhecer. Assim, observa-se a
“tendência de todo pensamento burocrático” em “converter todos os problemas de política em
problemas de administração” (p. 143).
                          O funcionário deixa de ver que, por trás de cada lei promulgada, se encontram os
                          interesses socialmente articulados e as Weltanschauungen [visões-de-mundo] de um
                          grupo social específico. [...] Considera a revolução um acontecimento sinistro dentro de
                          um sistema de outra forma ordenado, e não a expressão viva de forças sociais
                          fundamentais de que dependem a existência, a preservação e o desenvolvimento da
                          sociedade (MANNHEIM, 1972, p. 144).
         O autor considera ainda que, em cada sociedade, há grupos sociais cuja tarefa específica
consiste em dotar aquela sociedade de uma interpretação do mundo, aos quais denomina
intelligentsia. O pensamento da intelligentsia é acadêmico e sem vida (escolástico) e busca o
afastamento dos conflitos manifestos da vida cotidiana, ou seja, os conflitos entre os vários modos
de experiência, muito embora em seu seio estejam presentes antagonismos característicos da
disputa por posições de poder. Apesar disso, Mannheim considera que a posição que mais se
aproximaria da verdade acerca do real seria a da “intelligentsia socialmente desvinculada
(freischwebende Intelligenz)”, ou seja, a dos intelectuais desvinculados de qualquer classe social,
capazes de realizar uma “síntese dinâmica” entre as várias posições (MANNHEIM, 1972, p. 183).
Obviamente que essa é a posição de um intelectual à qual Löwy (2008) compara à façanha do
Barão de Münchhausen de tentar arrancar-se do pantanal em que se está atolado puxando os
próprios cabelos.
        Em uma linha muito próxima à de Mannheim está a de Althusser, para quem a ideologia
representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições de existência. Althusser (2001)
afirma que “só há ideologia pelo sujeito e para o sujeitos” (p. 93) e que é a ideologia que
“constitui” os indivíduos concretos em sujeitos através da interpelação. “Já somos sempre
sujeitos”, afirma Althusser (2001), mas é através da ideologia que a sociedade nos interpela, nos
“recruta”, para assumirmos posições de “sujeito”.
        Contudo, a idéia de sujeito de Althusser é de alguém que se sujeita, que está abaixo
(EAGLETON, 1996). Desta forma, o sujeito althusseriano seria aquele que cumpre um papel em
um sistema.
                          A ideologia adapta os indivíduos às suas funções sociais, provendo-os de um modelo
                          imaginário do todo, adequadamente esquematizado e “ficcionalizado” para seus fins. [...]
                          Ela serve à função adicional de ajudar a impedir o verdadeiro discernimento do sistema
                          social, assim conciliando os indivíduos com suas posições dentro dele (EAGLETON,
                          1996, p. 221).
        Afirma Althusser (2001) que o efeito da ideologia é “impor” (sem parecer fazê-lo) as
evidências “como evidências”, as quais não podemos deixar de reconhecer e diante das quais,
“inevitável e naturalmente”, exclamamos: “é evidente!” (p. 95). Por isso, aqueles que estão dentro
da ideologia se pensam como fora dela e apontam a ideologia como estando “nos outros”.
Somente quem se situa fora da ideologia, “isto é, no conhecimento científico”, pode dizer “estou
na ideologia” (p. 97). Daí que, para Althusser, o funcionamento da ordem social como um todo só
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pode ser conhecido pela teoria (EAGLETON, 1996), uma posição que se assemelha à de
Mannheim.
        Eagleton (1996) afirma que a ideologia não pode ser sinônimo de pensamento tendencioso
ou parcial. Para que o conceito não seja esvaziado, ele deve ter conotações de “luta pelo poder e
legitimação do poder” (p. 195). É preciso, portanto, retornar à essência da ideologia: a dominação.
Zizek (1996) afirma que estamos dentro do espaço ideológico no momento em que o conteúdo da
ideologia (seja ele verdadeiro ou falso) é funcional com respeito a alguma relação de dominação
social “de uma maneira intrinsecamente não transparente” (ZIZEK, 1996, p. 13-14).
        É por isso que Bourdieu procura substituir o conceito de ideologia por conceitos como
“dominação simbólica”, “potência simbólica” ou “violência simbólica” (BOURDIEU e
EAGLETON, 1996). A dominação, para Bourdieu (2007), não é o efeito direto e simples da ação
exercida por um conjunto de agentes (“a classe dominante”) investidos de poderes de coerção. Ela
é o efeito da estrutura de um campo, no qual profissionais da produção simbólica “enfrentam-se
em lutas que têm como alvo a imposição de princípios legítimos de visão e divisão do mundo
natural do mundo social” (BOURDIEU, 2007, p. 83). Por isso, pensar a “gestão social como
gestão pública não estatal” requer, como diria Bourdieu, a superação do “pensamento de Estado”,
“presente no mais íntimo de nosso pensamento” (p. 93), que leva à imposição de “escolhas de
Estado” que acabam por descartar muitas “possibilidades de existência” (p. 94).
        Bourdieu (2007) argumenta que com a “evolução das sociedades” há o surgimento de
universos relativamente autônomos (ou campos) com leis próprias que são, geralmente,
tautologias. Neles os participantes agiriam não conforme sua intenção consciente, mas a partir de
disposições “incorporadas” (habitus) - presentes nas mentes e nos corpos - que dão o “sentido do
jogo” (illusio) e suas regularidades, estruturando tanto a percepção do mundo como a ação no
mundo.
        Bourdieu (1989, p. 15), acredita que a destruição deste “poder de imposição simbólico
radicado no desconhecimento supõe a tomada de consciência do arbitrário”, quer dizer, “a
revelação da verdade objetiva e o aniquilamento da crença”. Isto se dá na medida em que o
“discurso heterodoxo destrói as falsas evidências da ortodoxia” e lhe “neutraliza o poder de
desmobilização”, criando “um poder simbólico de mobilização e de subversão”, capaz “de tornar
atual o poder potencial das classes dominadas”.
        O argumento de Bourdieu aqui parece próximo do de Lukács, para quem há “certas formas
de conhecimento – em especial o autoconhecimento de uma classe explorada – que, embora
rigorosamente históricas, são capazes de desnudar os limites de outras ideologias e, desse modo,
desempenham o papel de forças emancipatórias” (EAGLETON, 1996, p. 181). Nesse sentido, o
proletariado, a partir da auto-reflexão, teria uma condição privilegiada para “a emancipação
potencial de toda a humanidade” (p. 182).
        Bourdieu, no entanto, não acredita em uma capacidade de dissidência ou ruptura por parte
do “proletariado”, pois quanto “mais se desce na escala social, mais eles acreditam em talentos ou
dons naturais, mais acreditam que os que alcançam êxito são dotados de capacidades intelectuais
inatas. Quanto mais aceitam sua exclusão, mais aceitam que são burros”. “A capacidade de
dissenção é muito importante; ela realmente existe, mas não onde a procuramos” (BOURDIEU e
EAGLETON, 1996, p. 269.)
        Bourdieu tem sido questionado por enfatizar demais a função naturalizadora da ideologia
(doxa), minimizando a capacidade de que as pessoas possam ser críticas ou céticas em relação às
formas de poder vigentes, muito embora os tolerem (EAGLETON, in BOURDIEU e
EAGLETON, 1996, p. 268). Bourdieu, por sua vez retira o problema da questão da consciência
(falsa consciência, inconsciência, etc.), afirmando que os principais efeitos ideológicos são

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transmitidos “pelo corpo”. “O principal mecanismo de dominação opera pela manipulação
inconsciente do corpo” (p. 269). Se pensarmos nestes termos, o trabalho de emancipação é muito
difícil: “é tanto uma questão de ginástica mental, quanto de conscientização” (p. 270), ou seja,
implica em uma total transformação do habitus.
         Apesar de Bourdieu (2005a) afirmar que o habitus não se encerra com o indivíduo
socializado, estando sujeito a experiências que reforçam ou modificam suas estruturas; e que os
dominados, em qualquer universo social podem exercer certa força, produzindo efeitos no campo,
eles (os dominados), muito dificilmente escaparão à dominação. Isto porque, em sua ótica, não
conseguiriam superar a lógica (ideológica) do próprio campo, ou seja, superar o jogo. Logo, as
estratégias possíveis são sempre orientadas para o jogo dentro do campo, onde se tenta passar da
posição de dominado a dominador.
         Dubet (1994, p. 78) argumenta que na obra de Bourdieu “o único indivíduo real, o único
sujeito possível, é o sociólogo desligado do habitus ‘vulgar’ e do habitus ‘culto vulgar’ graças à
sua própria história e à sua própria auto-análise, que se torna possível mediante uma travessia
excepcional de diversos habitus, que permitem a sua objetivação”, ou seja, o que aconteceu com o
próprio Bourdieu. Será que transformações na visão de mundo acontecem somente a acadêmicos?
Acreditamos que não.
         Por isso, é preciso sustentar a tensão que mantém viva a crítica da ideologia: a de que
existe um lugar “que nos permita manter distância em relação a ela, mas esse lugar de onde se
pode denunciar a ideologia tem que permanecer vazio, não pode ser ocupado por nenhuma
realidade positivamente determinada; no momento em que cedemos à essa tentação, voltamos à
ideologia” (ZIZEK, 1996, p. 22-23 - grifo do autor). Que lugar seria este? Esperamos que os
elementos empíricos contidos neste estudo possam lançar luz sobre essas e outras questões até
aqui levantadas e que são fundamentais para a Gestão Social.
O estudo empírico
         O presente trabalho é fruto de um estudo de campo que vem sendo realizado no bairro
Arquipélago em Porto Alegre desde 2007. Trata-se de uma pesquisa qualitativa (TRIVIÑOS,
1995) na qual utilizou-se da análise documentalii e da observação, sistemática e assistemática
(SELLTIZ et al. 1965), nas reuniões dos principais fóruns do território. Além disso, foram
realizadas entrevistas com lideranças que representam as principais organizações atuantes no
território e com representantes do Programa de Governança Solidária Local da Prefeitura
Municipal de Porto Alegre e da ONG.
         A análise dos elementos coletados seguiu uma orientação dialético-hermenêutica, a qual
considera dois níveis de interpretação: o primeiro está relacionado com o contexto sócio-histórico
do qual faz parte o grupo a ser estudado; o segundo baseia-se no encontro com os fatos surgidos
na investigação – comunicações individuais, observação de condutas e costumes, análise das
instituições e cerimônias, etc. (MINAYO, 1999).
    Contexto Sócio-histórico do Arquipélago
        O Arquipélago é um dos bairros de Porto Alegre e foi constituído pela lei nº 2022 de
07/12/1959. Em 1976, por decreto oficial, o Arquipélago passou a fazer parte do Parque Estadual
do Delta do Jacuí (PEDJ) e, em 1979, o governo Estadual institui o Plano Básico do Parque com o
objetivo de disciplinar a ocupação e evitar a degradação ecológica, ficando a administração do
bairro a cargo da Fundação Zoobotânica. (OBSERVATÓRIO, 2008).
        Observou-se, nos últimos tempos, um aumento significativo da ocupação nas quatro ilhas
habitadas da região (Pavão, Grande dos Marinheiros, Flores e Pintada). Segundo dados do IBGE,
ObservaPOA e SEBRAE, a população do Arquipélago apresentou uma variação de 2.634 pessoas
(1996) para 5061 (2000). Atualmente a Prefeitura estima que mais de 12 mil pessoas morem na

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região. Diante dessa expressiva presença humana no território, no ano de 2005 uma parte do bairro
passa a ser Área de Preservação Ambiental Delta do Jacuí (APAEDJ), a partir da Lei Estadual
12.371/05, que definiu os limites do Parque e da Área de Proteção Ambiental. As terras
pertencentes aos limites da APAEDJ são de uso privado e pertencem aos seus proprietários que já
possuem o registro, ou podem ser regularizadas por aqueles que não possuem. Já as terras
pertencentes ao PEDJ deverão ser adquiridas pelo Estado do RS, pois são áreas destinadas à
“proteção integral dos ecossistemas sem a presença da ocupação humana”. Os termos de
referência para a regularização fundiária e os Planos de Manejo ainda estão em elaboração por
“equipes técnicas”, o que, obviamente, não inclui membros da comunidade. Esta pode participar
do Conselho Deliberativo da APAEDJ, que tem como finalidade proporcionar alternativas para a
resolução dos problemas de ordem social, econômica e ambiental (doc. da APAEDJ).
        As Ilhas possuem constituições históricas e geográficas diferentes entre si, o que configura
a existência de diversos territórios dentro de um mesmo bairro. A Ilha da Pintada, por exemplo,
possui uma característica de pessoas nascidas no próprio local, pescadores que ali se instalaram na
época da colonização açoriana, além de descendentes de escravos e antigos trabalhadores da
construção naval. Perfil extremamente diferente tem a Ilha Grande dos Marinheiros e do Pavão
que, por serem mais próximas ao centro da Capital, são habitadas, em sua maioria, por carroceiros
e catadores. Há também a Ilha das Flores, habitada, em sua grande maioria, por trabalhadores da
construção civil, pescadores e domésticas.
        Até o final da década de 1980 havia, na Ilha Grande dos Marinheiros, criação de porcos,
que gerava sustento para muitas famílias, mas que foi proibida a partir da (medi)ação do
Ministério Público, com vistas à preservação ambiental – uma solução simples para um problema
complexo, definição que serve bem para a palavra ideologia. Restou à população intensificar o
trabalho na coleta e separação do lixo, sendo ali fundado, sob a tutela da Prefeitura, o primeiro
galpão de reciclagem de Porto Alegre. Alguns de seus moradores afirmam, inclusive, ter
inventado “a coleta seletiva na cidade de Porto Alegre”. A coleta de materiais recicláveis também
é a fonte de sobrevivência dos moradores da Ilha do Pavão, porém a atividade é feita
individualmente, no pátio das casas.
        A maioria dos levantamentos socioeconômicos apresenta “dados” desfavoráveis sobre a
região. A análise multidimensional da pobreza em Porto Alegre (COMIN et al, 2006), aponta que
os índices da região situam-se abaixo da média geral da cidade nas questões de Saúde, Nutrição,
Educação, Conhecimento, assim como no quesito qualitativo de “amizade e confiança”. Por outro
lado, em três indicadores, de caráter qualitativo (participação, solidariedade e
liberdade/satisfação), a região supera a média da cidade. Diante disso, fica-se com a percepção de
que a “pobreza” do bairro Arquipélago tem algo de muito específico: diz respeito à falta de acesso
a bens e serviços públicos básicos e não à fragilidade dos laços sociais, nem da participação
cidadã.
        Contudo, conclusões com base em dados numéricos pode ser um recurso ideológico, por
mostrar uma parte da realidade como se fosse o todo. Não mostra a história de luta daqueles
habitantes pelo seu direito de existir e também que aquele lugar é um espaço bastante disputado
para investimentos imobiliários. Condomínios que ali se instalam anunciam o paraíso natural e a
facilidade de chegar ao centro de Porto Alegre em apenas 15 minutos. Há residências à venda que
ultrapassam o valor dos dois milhões de reais e inúmeras marinas que oferecem uma gastronomia
requintada, sendo palco de festas que incluem entre as atrações shows de artistas nacionais.
Alguns dos mais tradicionais clubes de Porto Alegre têm ali sua sede.
        Isso tudo faz com que o fato de morar no Arquipélago seja algo em si contraditório. Para as
classes mais altas é questão de estilo; para a população local é sinônimo de estigma. Enquanto as

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margens dos rios são ocupadas por luxuosas “casas de veraneio”, a população se espreme no
espaço que sobra (às margens da rodovia ou entre a rua e o banhado) e tenta vislumbrar, entre os
altos muros das mansões, um pouco da paisagem do rio.
        Mas há contradições dentro da própria população local. Como relata uma liderança, “são
várias as questões”: a “questão do carroceiro”; “a questão dos galpões, que está ligada diretamente
ao lixo”; “a questão dos pescadores” que acusa o carroceiro de sujar o rio. “Há briga entre as
entidades e estrelismo”. Muitos afirmam que as lideranças estão “viciadas”; “não tem contato com
a base”; “só aparecem em eleição”; se sentem poderosos por ocuparem uma posição reconhecida,
e ainda impedem outros de participar. Como exemplo, temos as brigas entre as duas associações
de carroceiros, pois uma delas é ligada à Força Sindical, enquanto a outra é vinculada ao
Movimento Nacional dos Catadores. Esses exemplos sinalizam que muitas lideranças locais
perseguem interesses muito mais ideológicos do que solidários, ou emancipatórios. Participar, por
exemplo, dos conselhos e fóruns locais não interessa
        Apesar das divisões territoriais e ideológicas, existe no Arquipélago um grupo de
lideranças e de entidades com representatividade das principais ilhas que buscam a integração e a
construção coletiva de melhorias para os “ilhéus”. Elas lutam para fazer com que a comunidade
tome ciência da importância das questões que ali são tratadas. Afirmam não se importar de “ficar
na sombra”, de que outro vá à frente das ações, e reconhecem que a sua causa e a causa do outro
são semelhantes. “Eu luto pelo reconhecimento da minha cidadania, mas a luta não é só minha...
Minha relação é com a comunidade...não é de voto e de cargo”. “É uma questão de “consciência”
(líder comunitário). “Minha luta é sempre feita com muito amor e não com enfrentamento [...].
Não é por sigla ou por ideologia, mas pela comunidade” (coordenadora da RIPCA). Elas
trabalham incessantemente para “ocupar todos os fóruns de discussão do território para não dar
brecha para manobras” – como o Conselho da APAEDJ e o Fórum Regional do Orçamento
Participativo (FROP). Um dos principais fóruns tem sido a Rede Integrada de Proteção à Criança e
Adolescente (RIPCA).
    O encontro com a Realidade da Gestão Social do Território no Arquipélago
        Criada em 1999, a RIPCA não é apenas uma organização formal cuja “função” é discutir
apenas questões relativas à criança e ao adolescente. Trata-se de uma formação organizacional de
base territorial que é fruto de uma síntese de processos anteriores de mediação (Orçamento
Participativo, Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente). Desde 2000 a
coordenação foi assumida por lideranças locais que a apresentam como “um espaço de articulação
local, político e apartidário” que discute as demandas gerais da comunidade. Não possui espaço
físico, equipamentos ou funcionários, apenas um livro de Atas e suas reuniões acontecem
quinzenalmente na casa da AVESOL (Associação do Voluntariado e Solidariedade, entidade
ligada aos maristas) na Ilha Grande dos Marinheiros.
        Quando a atual gestão assumiu o município (em 2005), após 16 anos de governo do PT, a
RIPCA foi associada ao governo anterior e a Prefeitura tentou minar as bases da rede e fazer com
ela se detivesse à sua função específica: a proteção à criança e ao adolescente. Isso gerou
resistências por parte da coordenação. Essa resistência levou a Prefeitura a demitir a coordenadora
anterior da RIPCA que era funcionária da FASC (Fundação de Assistência Social e Cidadania).
“A prefeitura boicotava tudo, mas nós resistimos com amor” (coordenadora da RIPCA).
Atualmente a RIPCA é coordenada por uma moradora local, liderança reconhecida pela
comunidade, que afirma que a situação mudou. “A atual coordenadora regional da FASC tem uma
ótima compreensão da rede, diferente da anterior” (coordenadora da RIPCA).
        A comunidade reconhece a RIPCA mais do que o Centro Administrativo Regional (CAR-
Ilhas) da Prefeitura como organização legítima para encaminhar suas demandas ou prestar

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# Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações #

esclarecimentos sobre os mais diversos assuntos. As reuniões da RIPCA são um espaço para o
desabafo dos moradores da comunidade acerca de seus problemas quotidianos, que vão desde o
“cachorro da vizinha” e a poda de galhos de árvores até as gangues de jovens e o consumo de
drogas. Também o poder público, estadual e municipal, reconhece a legitimidade deste espaço
através da presença constante dos “serviços” (áreas ligadas à educação, assistência social e saúde)
nas reuniões. Problemas de violência e uso de drogas, por exemplo, são encaminhados para os
“serviços”. Porém, muitos casos são resolvidos pelas próprias organizações da comunidade, por
meio de líderes comunitários (lideranças ligadas a pastorais sociais como a Pastoral da Criança).
Elas organizam grupos de convivência, que procuram atender a uma demanda que o Estado não
consegue dar conta.
        A RIPCA passou a ser um local onde as pessoas encontram orientação, sendo realmente
“integrada” e integradora. Ela cria comissões, envia correspondências e solicita esclarecimentos a
órgãos públicos e organizações da comunidade. Por vezes, nessas reuniões de esclarecimento, há
um clima de tensão, mas, como salienta a coordenadora, assim ficam sabendo “quais são os
mecanismos do território; sabem que existe uma rede” e “que o território tem inúmeros
segmentos, inúmeros fóruns”.
        Quando as soluções não são conseguidas via RIPCA, a comunidade o consegue a partir de
manifestações e protestos organizados. Para isso conta com a experiência de organizações ligadas
a movimentos sociais como as associações de carroceiros. Elas realizam a prática do “bafão” junto
à Prefeitura ou a interrupção da rodovia para exigir que o Estado e suas organizações encontrem
soluções rápidas para problemas urgentes, como as cheias, a falta de energia elétrica, entre outras.
Há registros de protestos, mobilizações e marchas em direção à prefeitura que datam de mais de
uma década. Elas se intensificaram durante o período de discussão da “Lei dos carroceiros” (Lei
10.531/08 que proíbe a circulação de carroças no centro da cidade). Essa é uma lei de interesse da
Prefeitura que, para lidar com os seus desdobramentos, lançou mão da equipe do Programa de
Governança Solidária Local (PGSL).
    A Mediação da Prefeitura e a IDEOLOGIA da gestão “do” social no território
        Com a mudança da gestão na prefeitura, surge uma nova mediação do poder público
municipal, através do Programa de Governança Solidária Local (PGSL). A organização do PGSL
se dá sob a forma de uma Rede de Articulação intersetorial e multidisciplinar, composta pelo
Prefeito, Secretários, Secretários Adjuntos, Coordenadores de Secretarias, Comitê Gestor Local,
Articuladores de Governança e parcerias sociais locais e parcerias estratégicas – Poder
Público/Iniciativa Privada/Terceiro Setor – através das suas mais diversas representações: OP,
Fóruns de Planejamento, Conselhos Setoriais, Entidades, Igrejas, Empresas, Redes Econômicas,
etc. (BUSATTO, 2005), tudo isso estaria perfeitamente integrado em um “todo sistêmico”. Foi
esta rede de articulação que tentou substituir a RIPCA como elemento de coordenação dos
esforços no Arquipélago.
        Além da construção dessa rede, a implantação do PGSL no Arquipélago, previu, como
passos iniciais, a realização dos Seminários Visão de Futuro e a celebração do Pacto pela
Governança Solidária Local. No que diz respeito à elaboração da visão de futuro, o processo
procura despertar o “sonho” da comunidade, a partir da “técnica da explosão de idéias”.
                          E aí nós vamos trabalhando de acordo com aquilo que eles colocaram de prioridade. E
                          nós trabalhamos sempre com as metas do milênio, então o sonho vai até 2016 [...]. Por
                          exemplo, regularização fundiária: era uma coisa que aparecia muito, [...] e nós: ‘Não,
                          mas isso aqui não é o s... [sonho]. Isso aqui nós estamos tratando enquanto prefeitura.
                          Não é sonhar’. Sonhar é pensar que eu quero cultura, que eu quero me capacitar, que eu
                          quero melhorar a vida... Que o empresário, se ele melhorar o seu entorno, ele vai ter
                          menos violência, ele vai melhorar a sua empresa. Então essa é a visão que a gente tem

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# Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações #

                          que fazer com que as pessoas cheguem. Mas por, por (sic) elas né. (membro da
                          coordenação do PGSL – grifo nosso).
De fato, a “regularização fundiária”, um “sonho” da maioria dos ilhéus, não aparece entre 10
ações prioritárias no Arquipélago. Compreenderemos o motivo mais adiante.
        As Coordenação do PGSL revelou que as regiões consideradas modelo, inclusive com
direito à premiação, são as que mais rápido conseguem realizar o “Pacto pela Governança”,
evento simbólico que marca o início do programa, no qual o prefeito vai até o local e assina um
documento diante da comunidade. Regiões como a Noroeste e Humaitá/Navegantes (da qual o
Arquipélago fazia parte) são consideradas as mais problemáticas, pois ali o “pacto” só foi
realizado após um ano e meio. No Arquipélago, até o presente momento (passados cerca de 4 anos
do início do programa), ele ainda não aconteceu. A ação que é destacada pelo PGSL no
Arquipélago é a oficina “Educar para a paz e mediação de conflitos”, que teria resultado na
instalação do primeiro comitê de paz nas ilhas. Até onde se sabe esse comitê não funciona.
         Depois dessa dinâmica inicial, o PGSL passou a ser operacionalizado pelo Comitê Gestor
(CG). Os Comitês Gestores em tese seriam compostos pelos coordenadores dos Centros
Administrativos Regionais (CAR), por conselheiros do Orçamento Participativo (OP), por agentes
governamentais representantes de secretarias e órgãos do governo municipal e pelo Articulador da
Governança Solidária Local. Porém, na prática, ele é um “Comitê Gestor da Prefeitura”. Quem
participa do CG é o coordenador do CAR - Ilhas, que “pega as demandas de serviços normais”
daquela região e as discute com os representantes das secretarias da prefeitura em reuniões
mensais. Os delegados do OP têm a função apenas de levar até o CAR as demandas do
Arquipélago que serão discutidas nessa reunião.
        Embora a Prefeitura negue que o programa seja uma tentativa de acabar com o Orçamento
Participativo, as falas de seus representantes e o material gráfico do PGSL afirmam que o
programa supera o OP por não envolver recursos e que, por isso, não geraria disputas entre
regiões. Os recursos seriam oriundos de projetos e parcerias buscados pela comunidade com apoio
da Prefeitura e ONGs. Diante disso, há uma preocupação em qualificar as ONG´s “para a
compreensão e a prática de elaboração e gestão de projetos e de captação de recursos”, através do
CapacitaPoA, pois existem muitas “verbas para projetos que retornam e não são aplicadas”, o que
faz com que os profissionais procurem “tapar buracos” realizando ações de última hora para
cumprir prazos. Muitos recursos dos projetos são utilizados não na comunidade, mas em ações
superficiais e na própria máquina burocrática (o que observamos não só no caso da Prefeitura, mas
nas demais organizações do Estado).
        Desenvolver a “cultura da solidariedade”, ampliar a “ética da solidariedade” com base na
“territorialidade” são termos empregados em várias passagens do farto material gráfico produzido
pelo programa, com referência a teorias sobre governança. Mas o que, de fato, se observa é que o
programa está estruturado para atingir objetivos “estratégicos” da Prefeitura, norteados pelas
“Metas do Milênio da ONU, por meio do Programa Estratégico para o Alcance das Metas de
Inclusão Social.” (PREFEITURA MUNICIPAL, 2005 p. 6). A coordenação afirma que a proposta
do programa é “melhorar a vida das pessoas”, “de todas as classes”. “Nós trabalhamos com a
capacitação, nós trabalhamos todas as formas de melhorar a vida das pessoas....sem que elas saiam
do seu local”. Entretanto, o PGSL está presente “em todos os assentamentos que estão sendo
feitos na cidade”, “melhorando a vida das pessoas [...] tirando da beira do arroio” e “dando uma
casa”, mas as “pessoas não estão preparadas para aquela casa” (membro da coordenação do PGSL
– grifo nosso).
        No que diz respeito ao Arquipélago, o PGSL esteve diretamente envolvido na
regulamentação da “Lei dos carroceiros” e tem sofrido a pressão do Ministério Público Estadual
(MPE) para o cumprimento dos prazos e das “metas de transposição dos segmentos envolvidos em
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# Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações #

coleta seletiva para outras atividades” (doc. do MPE). Nisto se observa que por trás da proibição
da “circulação de carroças”, está a intenção do MPE, manifesta a partir de uma ação civil pública
contra o estado do Rio Grande do Sul e o município de Porto Alegre, que visa a “implementar
efetivamente o Parque Estadual Delta do Jacuí”, retirando as pessoas que ocupam “áreas de risco”
e resolvendo o “problema” da atividade de coleta e separação de lixo feita pelos carroceiros nas
ilhas (doc. MPE).
        Após um período ausente do território (curiosamente o período em que se discutia a “Lei
dos carroceiros”), os membros da coordenação do PGSL retornam ao território no final de 2009.
Estavam ali para sensibilizar as lideranças da comunidade para o preenchimento Cadastro Único
para Programas (CadÚnico), que objetiva a inserção das famílias de baixa renda em programas
sociais, projetos e ações governamentais das esferas federal e estadual. Para este cadastro, havia
recurso do Governo Federal que deveria ser aplicado até o final do ano. Mas não era só isso o que
justificava a pressa dos membros do PGSL e a escolha do Arquipélago como a primeira região de
Porto Alegre para o cadastramento. Ele também seria uma “alternativa” para a Prefeitura cadastrar
os carroceiros, um dos requisitos da “regulamentação” e “plena vigência” da “Lei dos
carroceiros”. Veremos os desdobramentos dessa mediação mais adiante. Por ora é preciso analisar
a mediação de uma ONG com vistas ao Desenvolvimento local do território (doc. Prefeitura).
    A Mediação de uma ONG e a UTOPIA da gestão “do” social no território
        A ONG em questão participou ativamente, com a CUT, do processo de redemocratização
do país, iniciando assim o trabalho de assessoria a movimentos populares e a sindicatos urbanos e
rurais no Rio Grande do Sul. Após a experiência de trabalho junto ao Governo Olívio Dutra (PT),
em que procurava desencadear, em diferentes regiões do RS, a construção de um Projeto de
Desenvolvimento Regional Alternativo (PDRA), passou a direcionar suas ações para a o
Desenvolvimento Local (DL). Com a redução dos recursos permanentes dos parceiros das
agências de cooperação internacional a ONG optou, no final de 2005, por priorizar a formação de
agentes e a inserção/acompanhamento a duas comunidades na Região Metropolitana de Porto
Alegre, uma delas o Arquipélago. Buscava, com isso, fortalecer os processos de DL e construir
alternativas de trabalho e renda (doc. ONG).
        Mesmo com um conjunto de iniciativas e projetos ali desenvolvidos, a ONG não conseguiu
reunir todos eles em uma proposta de desenvolvimento integrada. Trabalharam então para que a
comunidade, a partir de uma reflexão conjunta, pudesse escolher os projetos de interesse coletivo.
Realizaram uma primeira oficina, em outubro de 2006, que teve como objetivos a sensibilização
para realização de um diagnóstico participativo e a mobilização dos participantes para um
seminário sobre Desenvolvimento Local. O público participante da oficina foi em sua maioria
representantes da Ilha das Flores, onde o encontro aconteceu. A questão da cultura ficou marcada
como fator de integração nas ilhas, e com isso foi realizada uma mostra cultural de talentos em
janeiro de 2007, realizada na Ilha Grande dos Marinheiros. Porém, houve dificuldades em reunir
lideranças representativas de todas as ilhas, resultando na participação majoritária de pessoas da
Ilha Grande dos Marinheiros. Concluem que a preparação da mostra cultural constituiu-se em uma
proposta “da ONG”, não havendo a integração e participação efetiva dos atores locais. Com isso a
intenção de articulação e fortalecimento de um coletivo não conseguiu ser alcançada. Ainda em
2007, a ONG promove um seminário sobre Desenvolvimento Local, que contou com a
participação de aproximadamente 30 pessoas, entre associados e lideranças de entidades e grupos
das ilhas. A intenção era que houvesse outros seminários posteriormente, tendo sido escolhido o
tema da geração de renda e a economia como o tema do encontro posterior. Porém, nas discussões
internas da ONG, foi percebido que a tendência deste espaço era transformar-se no espaço “da
ONG” no Arquipélago e não um espaço efetivamente da comunidade local (doc. ONG).

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        A equipe da ONG vivencia então um momento importante de dúvida. De um lado, pensam
em fortificar a reflexão sobre a questão econômica, unir grupos produtivos e pensar as ilhas com
seu potencial turístico. De outro, analisam o fato de que a geração de renda é um fator
desagregador, pois há muitas divergências entre setores de produção. Questionam se a linguagem
utilizada não é um tanto abstrata, quando se trabalha com um público em extrema vulnerabilidade
social. Percebem também que o Arquipélago é um território onde muitas pesquisas e tentativas de
implantação de projetos já ocorreram, muitos deles sem êxito. Isso se reflete na desconfiança e no
receio da população local em relação a novos atores e projetos.
        A ONG conclui que, assim como é encontrado em comunidades carentes de uma maneira
geral, existe a espera por políticas públicas e ações assistencialistas para resolução dos problemas.
Ao trabalhar-se o “protagonismo, a cooperação, a geração e distribuição de riquezas no território,
a partir de uma organização e articulação dos atores ali presentes, o Desenvolvimento Local
encontra grandes desafios já interiorizados nos indivíduos”.
        Contudo, um integrante da ONG questiona se esse não seria um “jogo das pessoas pobres”
e que faz parte da “ação coletiva” daquele grupo, da sua “estratégia” de “gestão social”, para a
qual “estão plenamente conscientes de que vai dar resultado”. “Falta de participação e falta de
consciência” fariam, portanto, parte de um discurso que o poder usa e que “a gente às vezes está
envolvido”. O que há no Arquipélago seria um processo, onde existe a tese de que as “pessoas
pobres estão viciadas em um assistencialismo” e “se negam a participar”. A antítese seria, para a
ONG, o PGSL da Prefeitura, que “representa uma política neoliberal que quer deixar de fora o
conflito”, privilegiando o consenso. Mas há, acima de tudo, “um processo de autogovernança”, a
partir da participação da comunidade em fóruns locais de discussão dos problemas, como a
RIPCA.
        A partir dessa constatação, a ONG passa a participar assiduamente das reuniões da RIPCA.
Em 2007, em uma das reuniões, é convidada, pela Prefeitura a executar uma política pública da
Fundação de Assistência Social e Cidadania – FASC, o Projeto Ação Rua, desenvolvendo um
trabalho com crianças do arquipélago em situação de rua. Com base neste diálogo com a
comunidade a ONG reorienta seu trabalho. Temas como o da criança e adolescente, cultura e
regularização fundiária aparecem como capazes de mobilização comunitária e sensibilização de
pessoas mesmo com idéias diferentes. A ONG passa a tentar fortalecer os espaços e organizações
já existentes, o que leva a uma discussão mais ampla do desenvolvimento do território, para além
da perspectiva econômica.
        Por fim, diante da sugestão de uma liderança local na reunião da RIPCA para que a ONG
assessorasse as discussões sobre a APAEDJ, esta decidiu “dar uma parada no formação de
agentes”, (tendo inclusive de se justificar perante seus financiadores internacionais) e passou a
organizar reuniões de esclarecimento e discussão com a comunidade do Arquipélago sobre essa
questão. Nessas reuniões foi observada a presença de lideranças de outras organizações que
costumavam não participar.
    Lideranças, ONG e PGSL no espaço da Gestão Social do Território
        A tentativa do PGSL de realizar o cadastro dos carroceiros fez com que a coordenação e
seus agentes “cruzassem a ponte” para participar de diversas reuniões no Arquipélago. Uma delas
foi realizada na capela da Nossa Senhora Aparecida, na Ilha Grande dos Marinheiros. Ali estavam
presentes lideranças da comunidade, carroceiros e representantes da ONG. Após muita exposição
por parte do PGSL sobre como funcionaria o cadastro, com a comunidade escutando silenciosa e
perplexa, a representante da ONG pede a palavra. Em sua fala, diz que o “cadastro é secundário”,
que antes dele deveriam discutir a “Lei” e as “políticas públicas para os carroceiros”. Foi o


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# Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações #

estopim para as manifestações que se seguiram por parte dos representantes dos carroceiros e das
lideranças da comunidade.
        “Vocês representantes prometem mil e uma coisas e não acontece nada...Vocês querem
todos os nomes, de mãe, de filho...Mandam pro Governo Federal e cadê o recurso? Vocês
primeiro apresentem uma proposta, depois façam o cadastramento” (líder da Associação dos
Carroceiros “X”). “O Povo não vai mais acreditar nesse negócio. O OP foi todo aprovado e não
veio um tostão pra nada” (líder comunitário). “Teve várias reuniões de portas fechadas com
políticos e agora [a Prefeitura] vem com cadastramento...Os galpões [de reciclagem] são uma
vergonha! O pessoal ganha uma miséria...Qual é o projeto que a Prefeitura tem além de galpão? O
que vão fazer com os cavalos? Vão virar salame lá em Pelotas? Tem ONGs que ganharam milhões
usando nós... Queremos projetos pros filhos dos carroceiros” (líder da Associação dos Carroceiros
“Y”). “O cadastro vai trazer desconfiança por tantas violentações que já sofreram... A culpa é de
um sistema opressor que não atravessa a ponte... As leis são construídas arbitrariamente”
(coordenadora da RIPCA). “Vamos falar em política pública. Ele [apontando para o líder
Associação dos Carroceiros “Y”] já sabe o que cada um [dos carroceiros] quer, que um vai ser
plantador, etc.” (líder comunitária).
    Diante das colocações, os representantes da Prefeitura reagem. “Nós contamos ou contávamos
com as representações [lideranças] para chegar às pessoas... É nosso total interesse saber como
essas pessoas vão sobreviver, ninguém é tão burocrático... Queremos identificar e cadastrar no
SINE... Está-se pensando em outras coisas” (coordenadora do PGSL). “Não tenho o menor
propósito de prejudicar ninguém, sou concursada de carreira” (funcionária da Prefeitura). “A gente
não ta aqui como inimigo...Idéias, o grupo tá cheio de idéias, mas não sabe se elas são compatíveis
com a realidade... Tem o projeto de um grupo de alunos da UFRGS para os cavalos...”
(coordenadora do PGSL). Neste momento, um dos líderes dos carroceiros, que havia participado
de inúmeras reuniões com membros da Prefeitura e elaborado diversos projetos, reage indignado.
“Eu dei duzentas aulas com filhinho de papai falando no celular e vocês vêm falar em projeto da
UFRGS!” (e se retira da reunião). Uma antiga liderança das Ilhas pede a palavra e se dirige à
coordenadora do PGSL. “Isso aí há muitos anos atrás já vem essa história de tirar as
carroças...Minha preocupação é com as pessoas que saem da prisão...Tu daria emprego sabendo
que foi prisioneiro, mesmo que tenha feito poucas coisas?” E conclui “Não estamos mais naquele
tempo que davam canetaço. Hoje o povo manda”.
    Ao final da reunião, diferentes visões da realidade acompanham as soluções propostas. A
ONG aponta para a política de reciclagem com a garantia do trabalho dos carroceiros com o lixo
“nobre” do centro da cidade. A prefeitura, quer aproveitar “que tem verba” do Governo federal
para realizar seu cadastro, pois faz parte das exigências da “Lei dos carroceiros”. Desconhecendo
os inúmeros projetos já elaborados pela comunidade (Guarda Parque, viveiros de mudas nativas,
etc.), apresenta como solução a capacitação para o “mercado de trabalho”; não entende a
resistência da comunidade e toma as críticas à organização “Prefeitura” como ofensas pessoais. A
comunidade, por sua vez, diante das inúmeras promessas e da falta de um projeto que permitiria
aos carroceiros mudar de vida, apega-se ao cadastro como moeda simbólica de suas
reivindicações, pois reconhece que existem interesses que vão além da boa vontade dos
representantes do PGSL. “Não é o problema de vocês. Você quando está se interando do problema
e começa a exigir é demitido, ou trocado de lugar. Nós temos vários exemplos” (líder
comunitário).
     A partir dessa reunião, representantes do PGSL começam a participar das reuniões da RIPCA
e se fizeram presentes na reunião do Fórum Regional do Orçamento Participativo, na Ilha das
Flores. Novamente as lideranças dos carroceiros manifesta sua posição em relação ao descaso da

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# Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações #

Prefeitura para com a população do Arquipélago. “O primeiro problema da prefeitura é tirar o
carroceiro” e lembra da diminuição das “metas” (número de crianças atendidas) do “SASE”
(organização local que recebe recursos da Prefeitura para atender as crianças). A coordenação do
PGSL manifesta-se em tom diferente da reunião anterior. “Nós estamos com a faca no pescoço,
porque o Ministério Público vai cobrar”. “As coisas não foram resolvidas... O Comitê Gestor
deveria fazer a conexão, mas não está fazendo” (coordenadora do PGSL). “Puxa vida, eu tô com
tanto gás, será que eu não vou conseguir?... Eu não gostaria de frustrar e sair frustrada...” (agente
do PGSL).
    “Quando se sentou para elaborar essa lei... esqueceram que tem vidas...E não se lida com vidas
como se lida com letras” (coordenadora da RIPCA). “O comitê [de regulamentação da Lei dos
carroceiros]...se reuniu... e tentou preparar uma lei mais bem feita. Pra nós foi totalmente
frustrante a votação no Ministério Público[...]. Então ficou a Lei escrita pelo [vereador X]”
(coordenadora do PGSL) “Quando eu olho pra essa lei... Puxa vida, como vão tirar esse povo
daí...Essa atividade...Ninguém precisa ter a mesma bandeira, mas um objetivo a gente pode ter...
Depois que sair daqui podemos levantar a bandeira” (agente do PGSL). Uma das lideranças dos
carroceiros, admirada, exclama: “Isso é utopia, hein?!”
Conclusão
    O presente estudo iniciou com uma questão importante para compreender “as interfaces e
delimitações entre gestão pública e gestão social”: “É possível separar administração e política”?
A partir do presente estudo, pode-se concluir que não. Isto porque a dimensão “social” da gestão
implica em reconhecê-la como um processo dialético, no sentido hegeliano do termo, com sua
imediaticidade, suas mediações e suas superações. Daí que ver a Gestão Social como um sistema,
que separa funções gerenciais e funções políticas e as trata as como um todo orgânico é uma visão
ideológica, porque esconde as muitas contradições que existem em seu seio. Por trás dessa visão
está a idéia que se reproduz como modelo de gestão pública: a de uma máquina eficiente que não
considera as pessoas, e cujas decisões são tomadas pelos detentores do conhecimento técnico – ou
seja, a burocracia no sentido amplo dado por Weber.
    No caso das mediações que ocorrem no Arquipélago, viu-se esta visão de sistema presente no
momento em que leis são elaboradas e regulamentadas por equipes técnicas apenas, excluindo a
comunidade. Isso acontece para que se tenha o máximo de racionalidade formal no processo, para
que o fim não seja mudado em função de relações. No entanto, a equipe “técnica” tem suas
relações, tem sua visão de mundo, que não é excluída quando se elaboram as normas. Por
exemplo: os membros do Ministério Público e da Prefeitura só conseguem ver o problema do lixo
e excluem de suas ações as grandes mansões e condomínios que se instalam no Arquipélago.
        Aqui se vê a ideologia como uma visão social de mundo (MANNHEIM, 1972; LÖWY,
2008), ou uma representação imaginária (ALTHUSSER, 2001), que busca justificar a dominação
social de uma classe ou grupo sobre outro. Mas a ideologia pode ser vista também como um jogo
social em que “atores” são dominados pelo habitus ou pelo campo (BOURDIEU, 2007).
        A queixa comum de quem trabalha com comunidades ditas “pobres” ou “carentes” é que
há uma cultura de assistencialismo e clientelismo que impede que as pessoas se emancipem, que
“tomem consciência”. Elas estariam presas ao jogo. Mas o que significa tal emancipação? Muitas
vezes ela está associada ao discurso ideológico do empreendedorismo, legitimado pela academia,
de que as próprias pessoas devem buscar, individual ou coletivamente, alternativas econômicas de
sobrevivência e que esta deveria tornar-se a preocupação central de suas vidas. Esse discurso tem
por trás modelos idealizados de desenvolvimento – verdadeiros ídolos da tribo – que, embora
professem a “solidariedade” e a “cooperação”, acabam, não raras vezes, criando organizações
pontuais que buscam a disputa por posições de poder e/ou recursos. São, muitas vezes, ações

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# Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações #

destinadas ao “desenvolvimento” e “combate à pobreza”, ditados por organismos internacionais,
com eficácia prática discutível, mas com incontestável eficácia política, que acabam por legitimar
a ordem desigual. Troca-se as estratégias sem trocar o jogo, pois, sob o argumento da autonomia,
mantém-se a dominação pelo campo econômico, ao passo que restringe-se a participação no
campo político.
         Entretanto, mesmo uma suposta participação política pode revestir-se da ideologia, em que
o Estado assume uma imagem mítica (um deus ou um demônio). Sendo assim, a idéia de “o
Estado somos nós” é tão ideológica quanto a idéia de que “o Estado é o inimigo”. Ambas têm uma
força ilocucionária de tal magnitude que não permite perceber as pessoas, suas posições e
disposições nas organizações. Nesse casso, seria possível admitir que a ideologia “interpela” os
sujeitos (ALTHUSSER, 2001), pois, como se observou, os membros do PGSL da Prefeitura
incorporaram de tal forma o discurso da governança que acreditam ser ela a melhor solução, de
modo que ,quando o discurso ortodoxo é contraposto pelo discurso heterodoxo da comunidade, se
sentem ofendidos e agredidos em sua identidade. Os outros, percebidos como inimigos, são vistos
como uma sigla, uma bandeira e não como pessoas. Trata-se daquilo que Hegel (2007) chamou de
visão moral, em que “o dever constitui seu único e essencial fim e objeto”, e o pobre, esse “ser-
outro”, “é uma efetividade completamente privada-de-significação”. As organizações (ongs,
academia, governos) querem transformar a realidade desse outro em algo idêntico a si; querem
moralizá-la, adaptá-la a seus padrões, torná-la espelho, mas sem os consultar.
         Entretanto, o insucesso na tentativa de formar um ator coletivo no território, ao menos no
espaço destes 3 anos em que se está desenvolvendo a pesquisa, tanto por parte do PGSL, como da
ONG, revela que a realidade resiste ao poder da ideologia. Diante dela “os pobres”, ou a “ralé”
como diária ironicamente Jessé Souza, mobilizam diversas estratégias de luta e organizações
sociais para sobreviver, materialmente e simbolicamente. Apesar de encontrarmos apatia e
desencanto junto nas comunidades, isso não significa termos ali pessoas não conscientes, mas sim
pessoas que não experimentaram outras formas de agir, ou que, tendo experimentado, descobriram
ser estas inviáveis ou impossíveis. Isto porque, no plano político, a experimentação é muito
arriscada para o poder dominante. Daí que poucos participam dos espaços deliberativos do
território.
         Apesar disso, há, no Arquipélago, uma articulação dinâmica entre lideranças, organizações
e movimentos sociais locais para a Gestão Social. O território tem seus “mecanismos”, ou melhor,
seus espaços de gestão que são reconhecidos pelos moradores. A interação nesses espaços é capaz
de transformar a visão de mundo ideológica de muitos dos seus participantes. No presente estudo,
viu-se como a experiência da convivência com o “diferente” – a comunidade do território – é
capaz de alterar muitos pré-juízos formais que estão na raiz dos prejuízos substanciais e materiais
causados por políticas públicas desconectadas da realidade. Contudo, a transformação da visão de
mundo não é resultado somente da participação nos espaços democráticos. No caso do
Arquipélago, viu-se que algumas lideranças têm interesse em ocupar espaços coletivos que lhes
dêem posições de poder no campo. Por trás disso existem jogos sociais que se situam em outros
espaços, fora do território (o movimento, o partido, etc.). O que interessa é a luta política em si,
seja ela de contestação ou de manutenção do status quo. Enquanto isso, outras lideranças têm
interesse “emancipatório”. Estes, ao invés de serem “indivíduos” dominados pelo campo, são
“sujeitos” que resistem à implantação de modelos dominadores e lutam para transformar a
realidade dos demais moradores. Procuram ocupar os espaços pró-forma que o poder político
constitui e transformá-los em espaços deliberativos sobre as questões que mais interessam aos
Ilhéus.


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# Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações #

         A RIPCA é um desses espaços, cujas lideranças têm um interesse mais amplo e resistem a
se ater apenas à “função” de tratar exclusivamente da temática da criança e do adolescente. Nela
são tratados diversos assuntos relativos à comunidade que se sintetizam no exercício da
solidariedade. Interessa mais tratar das questões urgentes do que discutir o “desenvolvimento” ou
um “sonho” que muitas vezes não é o da própria comunidade. Isto porque só quem vive no
território pode compreender a realidade. As intervenções de quem está fora são feitas, ou do ponto
de vista da ideologia, ou da utopia.
         Aqui percebeu-se uma dialética entre transformação e manutenção que impede que
sejamos simplistas e apontemos ideologia no Estado e a utopia nos movimentos sociais. Por outro
lado, o “movimento” dos ilhéus não é nem ideológico, nem utópico. Ele reflete a organização
social que acontece no topos, no cotidiano e foge ao enquadramento em uma luta por manter ou
derrubar o poder. É uma luta que se sintetiza nas palavras “resistir com amor”. Apesar disso, ela
não deixa de ser um movimento social que aspira, não à transformação do global, mas à defesa de
valores universais que transformarão o local.
         Na discussão teórica inicial, questionou-se a respeito de qual seria o lugar onde é possível
fazer a crítica da ideologia. Lugar este que “não pode ser ocupado por nenhuma realidade
positivamente determinada” (ZIZEK, 1996, p. 23). O estudo revelou que este lugar talvez seja
ocupado por algumas das lideranças do território. Por isso, o território seria o lócus privilegiado
para se pensar a gestão social “como gestão pública não estatal”. Isto porque ali acontece, como
diria Bourdieu (2007), a superação do “pensamento de Estado” que leva à imposição de “escolhas
de Estado”. No entanto, fica ainda a questão sobre o porquê de algumas lideranças ocuparem este
lugar e outras não. Espera-se poder responder a essa e outras questões em estudos futuros.
Referências:
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Escuta, 1985.
ALVES, M. A.; MEREGE, L. C.; SPINK, P. K.; TENÓRIO, F. G.; TREZZA, V. M.
Apresentação. Fórum Organizações Sociais. In: Revista de Administração de Empresas. Vol. 48,
nº 3, p. 61-63., jul/set, 2008.
BOURDIEU, O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,1989.
______. El propósito de la sociología reflexiva (Seminario de Chicago). In: BOURDIEU, Pierre;
WACQUANT, Loïc. Una invitación a la sociología reflexiva. México: Siglo XXI Ed., 2005a.
p.101-300.
______. Esboço de Auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005b.
BOURDIEU, Pierre; EAGLETON, Terry. A doxa e a vida cotidiana: uma entrevista. In: ZIZEK,
Slavoj (Org.).Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 265-278.
BRESSER-PEREIRA, Luis Carlos. Réplica: Comparação Impossível. In: Revista de
Administração de Empresas.(RAE Debates) Vol. 45, nº1, p. 50-51, 2005.
BUSATTO, Cezar. Governança Solidária Local: desencadeando o processo. Porto Alegre,
Secretaria Municipal de Coordenação Política e Governança Local, nov., 2005.
CARRION, Rosinha. Gestão Social: especificidade e práticas em discussão. In: JUNQUILHO,
G.S.; BIANCO, M. de F.; BEHR, R. R.; PETINELLI-SOUZA, S. Tecnologias de Gestão: por
uma abordagem multidisciplinar.Vol. 2, Vitória: EDUFES, 2007.
COMIN, Flávio; BAGOLIN, Izete; AVILA, Rodrigo; PORTO JR. Sabino da Silva; PICOLOTTO,
Volnei da Conceição. Pobreza: da insuficiência de renda à privação de capacitações. Uma
aplicação para a cidade de Porto Alegre através de um indicador multidimensional. Porto Alegre,
UFRGS, PPGE/FCE, 2006, 121 p.
DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.


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# Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações #

EAGLETON, Terry. A ideologia e suas vicissitudes no marxismo ocidental. In: ZIZEK, Slavoj
(Org.).Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 179-226.
GOHN, Maria da G. Novas teorias dos movimentos sociais. São Paulo: Loyola, 2008.
HEGEL, Geog W. F. Fenomenologia do Espírito. 4. Ed. Petrópolis, Vozes: Bragança Paulista,
Editora Universitária São Francisco, 2007.
LÖWY, Michael. Ideologias e Ciência Social: elementos para uma análise marxista.18. Ed. São
Paulo: Cortez, 2008.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. 2. Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.
MINAYO, Maria C. de S. O desafio do conhecimento. 5. ed. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro:
Abrasco, 1999.
OBSERVATÓRIO da Cidade de Porto Alegre. História do bairro arquipélago. Porto Alegre:
Observapoa: 2008. Distponível em http://www2.portoalegre.rs.gov.br/observatorio Acesso em:
28/07/2008.
PAULA, Ana Paula Paes de. Administração Pública Brasileira entre o Gerencialismo e a Gestão
Social. In: Revista de Administração de Empresas. Vol. 45, nº1, p. 36-49, 2005.
______. Tréplica: Comparação Possível. In: Revista de Administração de Empresas.(RAE
Debates) Vol. 45, nº1, p. 52-53, 2005b.
PREFEITURA MUNICIPAL de Porto Alegre. Governança Solidária Local: Porto Alegre, Cidade
Rede. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Coordenação Política e Governança Local, 2005.
SELLTIZ, C. et. al. Métodos de pesquisa nas relações sociais. São Paulo: EPU, 1965.
TENÓRIO, Fernando G. Gestão Social: uma perspectiva conceitual. In: Tem Razão a
Administração? Ensaios sobre Teoria Organizacional e Gestão Social. Ijuí: Editora UNIJUÍ,
2002.
TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em
educação. São Paulo: Atlas, 1995.
ZIZEK, Slavoj. O espectro da ideologia. In: ZIZEK, Slavoj (Org.).Um Mapa da Ideologia. Rio de
Janeiro: Contraponto, 1996, p. 7-38.


i
 Esta questão já havia sido levantada por Mannheim (1972) no início do século passado. O autor, utilizando a
distinção de Schäffle, atribui à “administração” a ciência dos “negócios rotineiros de Estado” (laufendes
Staatsleben), enquanto a “política” trata dos fatos que estão ainda em processo de transformação, cujas decisões
dão origem a situações novas e singulares (p. 138). O autor propõe então uma Sociologia Política como sendo a
ciência do processo e da transformação, “da prática e para a prática” (p. 196), que busque analisar o
desdobramento das forças em conflito.
ii
 Os documentos oficiais constam das referências, os demais são referidos no próprio texto de forma simplificada,
citando-se apenas a organização/entidade que o produziu.




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A ciência e os avanços do conhecimento em sociologia
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Gestão Social entre ideologia e utopia

  • 1. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # Gestão Social do Território: Entre a Ideologia e a Utopia Márcio André Leal Bauer Rosinha Machado Carrion Resumo: Busca-se no presente artigo contribuir para a reflexão a respeito das “interfaces e delimitações entre a gestão pública e a gestão social”, questionando-se o caráter ideológico de ambas, em seus “conceitos e práticas”. Diante da impossibilidade de separar administração e política, o estudo apresenta a Gestão Social como um processo dialético, com sua imediaticidade, suas mediações e suas superações. O trabalho está dividido em duas grandes partes. Na parte teórica, discute-se o conceito de ideologia e suas implicações. Na parte empírica, utiliza-se uma pesquisa que vem sendo realizada desde 2007 no bairro Arquipélago em Porto Alegre. Ela procura analisar as mediações da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e de uma ONG. Dentre outras constatações, verifica-se que o território é um espaço privilegiado para superar as concepções ideológicas e pensar a “gestão social como gestão pública não estatal”. Palavras-chave: Gestão Social; Ideologia; Utopia. Temática 1: Gestão Social e Políticas Públicas Introdução Em 2005, um debate entre Ana Paula Paes de Paula e Luis Carlos Bresser-Pereira confrontou duas concepções de administração pública. De um lado, a idéia de uma “administração pública gerencial”, ou “gestão pública”, como sendo uma maneira de organizar e administrar o Estado, oposta à “burocracia” e voltada a “resultados” (BRESSER PEREIRA, 2005). De outro, a “administração pública societal”, como uma esfera pública não-estatal, intimamente relacionada com a criação de espaços públicos de negociação e espaços deliberativos (PAULA, 2005a). Enquanto Bresser Pereira (2005) considera esta última muito mais como uma forma de governo (democracia participativa) do que uma forma de gestão (sendo que ambas poderiam ser combinadas em uma “administração pública gerencial social”), Paes de Paula (2005b), acredita que o próprio fato de se ter uma administração pública gerencialista demonstra que ela “não partilha do mesmo repertório de crenças e práticas da gestão social” (p. 52). O debate trouxe à tona uma importante questãoi: “é possível separar administração e política”? Muitos podem ter pensado que a posição de um ou de outro autor, ou mesmo o próprio debate em si, tinha um forte conteúdo ideológico. Mas é bom lembrar que Tragtemberg (2008) já afirmava ser a própria teoria de Administração ideológica pelo fato de que algumas correntes aspirarem à condição de dominantes em face do interesse de determinadas classes ou grupos. A ideologia é, portanto, um fenômeno que deve ser considerado por quem pretende estudar a Gestão Social, já que seus efeitos são capazes de imiscuir-se no próprio objeto de estudo. Assim sendo, a propósito de refletir sobre as “interfaces e delimitações entre a gestão pública e a gestão social”, é oportuno questionar sobre o caráter ideológico de ambas, em seus “conceitos e práticas”. Conceitualmente, a Gestão Social seria a tentativa de substituir a gestão tecnoburocrática (monológica) por um gerenciamento mais participativo (dialógico), no qual o processo decisório é exercido por meio de diferentes sujeitos sociais (ALVES, et al., 2008). De um ponto de vista deontológico (ou utópico), a Gestão Social não deveria ser sinônimo de transposição dos princípios e postulados da gestão de negócios para o campo social. Portanto, seu fundamento epistemológico deveria ser oposto ao da teoria tradicional, orientando-se, sobretudo, para a intersubjetividade-dialogicidade (CARRION, 2007; TENÓRIO, 2002); rejeitando as “fórmulas do management”; e tentando “contemplar as peculiaridades culturais locais e as demandas de http://rgs.wiki.br 1/16
  • 2. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # participação popular” (PAULA, 2005b, p. 52). Na prática, o que se verifica, em alguns casos, é a gestão do social, caracterizada pela presença do Estado-mínimo nas políticas sociais (TENÓRIO, 2002); e pelo deslocamento dos eixos de coordenação das ações coletivas da sociedade civil para os gabinetes e secretarias do poder estatal (GOHN, 2008). Diante disso, um dos objetivos do presente trabalho é apresentar a Gestão Social não como algo dado, mas um processo dialético, com sua imediaticidade, suas mediações e suas superações. Outro objetivo, associado à temática deste fórum, é afirmar o território como lócus privilegiado para superar as concepções ideológicas e pensar a “gestão social como gestão pública não estatal”. O artigo tem como base uma pesquisa que vem sendo realizada desde 2007 no bairro Arquipélago em Porto Alegre. Ele procura analisar duas mediações que ali ocorrem, consideradas as mais relevantes: a mediação da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e a mediação de uma ONG. A análise dos elementos coletados seguiu a orientação dialético-hermenêutica (MINAYO, 1999), a qual considera tanto o contexto sócio-histórico do território, quanto os fatos surgidos durante a investigação. O trabalho está dividido em duas grandes partes: uma teórica, em que se discute o conceito de ideologia e suas implicações; outra empírica em que é descrito o território, suas organizações e as mediações que ali ocorrem. Na seção final, em um esforço de síntese entre a teoria e a pesquisa empírica, são apresentadas as principais implicações para a Gestão Social. Ideologia, Utopia e Realidade Uma das primeiras definições de ideologia remonta à França do Século XIX, quando era utilizada por Cabanis, Destutt de Tracy e seus amigos para significar a teoria das idéias, entendidas como interação entre o organismo e a natureza (ALTHUSSER, 2001; LÖWY, 2008). Mas seu sentido teria sido mudado por Napoleão quando, em um discurso, teria atacado o próprio Destutt de Tracy e seus amigos, os chamando de “ideólogos” – no sentido de quem vive em um mundo especulativo, que ignora a realidade (LÖWY, 2008). Outra origem possível associa-se à idéia de idola do filósofo Francis Bacon, para quem os ídolos eram “fantasmas” ou “pré-concepções” (ídolos da tribo, da caverna, do mercado e do teatro), todos eles fontes de erro e obstáculos no caminho do conhecimento verdadeiro e da instauração das ciências (MANNHEIM, 1972). É nesse sentido pejorativo que Marx, em A Ideologia Alemã, irá utilizar o conceito, como equivalente à ilusão e falsa consciência (LÖWY, 2008). Já com Lênin o conceito ganha um tom mais abrangente, como qualquer concepção da realidade social ou doutrina política, vinculada a interesses de certas classes sociais – burguesia ou proletariado (LÖWY, 2008). Essa idéia mais ampla de ideologia é encontrada também na obra de Karl Mannheim, o qual procura dar-lhe um caráter mais analítico. Para Mannheim (1972), a dissolução gradativa de uma “visão de mundo objetiva unitária” resultou de uma pluralidade de concepções do mundo divergentes, fazendo com que surgisse a tendência para desmascarar as “motivações inconscientes do pensamento grupal”. Esta “intensificação final da crise intelectual pode ser caracterizada pelos dois conceitos do tipo slogan ‘ideologia e utopia’” que, “devido à sua importância simbólica”, foram escolhidos para o título da obra do autor (MANNHEIM, 1972, p. 66). A ideologia tem a ver com estabilidade e manutenção do status quo; diz respeito a grupos dominantes que se tornam, em seu pensar, “tão intensamente ligados por interesse a uma situação que simplesmente não são capazes de ver certos fatos que iriam solapar seu senso de dominação” (MANNHEIM, 1972, p. 66). Já a visão utópica é essencialmente crítica, pretende algo ainda não realizado. Já a utopia reflete a descoberta [...] de que certos grupos oprimidos estão intelectualmente tão firmemente interessados na destruição e na transformação de uma dada condição da sociedade que, mesmo involuntariamente, somente vêem na situação elementos que http://rgs.wiki.br 2/16
  • 3. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # tendem a negá-la. Seu pensamento é incapaz de diagnosticar corretamente uma situação existente na sociedade. Eles não estão absolutamente preocupados com o que realmente existe; antes, em seu pensamento, buscam logo mudar a situação existente (p. 67) Löwy (2008) percebe nos conceitos de ideologia e utopia de Mannheim duas formas de um mesmo fenômeno, o qual pode ser chamado de “visão social de mundo”. Este se caracteriza pela existência de um conjunto estrutural e orgânico de idéias, de representações, teorias e doutrinas, que são expressões de interesses sociais de grupos ou classes (LÖWY, 2008, p. 17). Mannheim (1972) afirma que tanto a ideologia quanto a utopia são incapazes de “ver” o real em todos os seus aspectos. São estilos de pensamento socialmente condicionados, ou estruturas de consciência que determinam a nossa maneira de conhecer. Assim, observa-se a “tendência de todo pensamento burocrático” em “converter todos os problemas de política em problemas de administração” (p. 143). O funcionário deixa de ver que, por trás de cada lei promulgada, se encontram os interesses socialmente articulados e as Weltanschauungen [visões-de-mundo] de um grupo social específico. [...] Considera a revolução um acontecimento sinistro dentro de um sistema de outra forma ordenado, e não a expressão viva de forças sociais fundamentais de que dependem a existência, a preservação e o desenvolvimento da sociedade (MANNHEIM, 1972, p. 144). O autor considera ainda que, em cada sociedade, há grupos sociais cuja tarefa específica consiste em dotar aquela sociedade de uma interpretação do mundo, aos quais denomina intelligentsia. O pensamento da intelligentsia é acadêmico e sem vida (escolástico) e busca o afastamento dos conflitos manifestos da vida cotidiana, ou seja, os conflitos entre os vários modos de experiência, muito embora em seu seio estejam presentes antagonismos característicos da disputa por posições de poder. Apesar disso, Mannheim considera que a posição que mais se aproximaria da verdade acerca do real seria a da “intelligentsia socialmente desvinculada (freischwebende Intelligenz)”, ou seja, a dos intelectuais desvinculados de qualquer classe social, capazes de realizar uma “síntese dinâmica” entre as várias posições (MANNHEIM, 1972, p. 183). Obviamente que essa é a posição de um intelectual à qual Löwy (2008) compara à façanha do Barão de Münchhausen de tentar arrancar-se do pantanal em que se está atolado puxando os próprios cabelos. Em uma linha muito próxima à de Mannheim está a de Althusser, para quem a ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições de existência. Althusser (2001) afirma que “só há ideologia pelo sujeito e para o sujeitos” (p. 93) e que é a ideologia que “constitui” os indivíduos concretos em sujeitos através da interpelação. “Já somos sempre sujeitos”, afirma Althusser (2001), mas é através da ideologia que a sociedade nos interpela, nos “recruta”, para assumirmos posições de “sujeito”. Contudo, a idéia de sujeito de Althusser é de alguém que se sujeita, que está abaixo (EAGLETON, 1996). Desta forma, o sujeito althusseriano seria aquele que cumpre um papel em um sistema. A ideologia adapta os indivíduos às suas funções sociais, provendo-os de um modelo imaginário do todo, adequadamente esquematizado e “ficcionalizado” para seus fins. [...] Ela serve à função adicional de ajudar a impedir o verdadeiro discernimento do sistema social, assim conciliando os indivíduos com suas posições dentro dele (EAGLETON, 1996, p. 221). Afirma Althusser (2001) que o efeito da ideologia é “impor” (sem parecer fazê-lo) as evidências “como evidências”, as quais não podemos deixar de reconhecer e diante das quais, “inevitável e naturalmente”, exclamamos: “é evidente!” (p. 95). Por isso, aqueles que estão dentro da ideologia se pensam como fora dela e apontam a ideologia como estando “nos outros”. Somente quem se situa fora da ideologia, “isto é, no conhecimento científico”, pode dizer “estou na ideologia” (p. 97). Daí que, para Althusser, o funcionamento da ordem social como um todo só http://rgs.wiki.br 3/16
  • 4. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # pode ser conhecido pela teoria (EAGLETON, 1996), uma posição que se assemelha à de Mannheim. Eagleton (1996) afirma que a ideologia não pode ser sinônimo de pensamento tendencioso ou parcial. Para que o conceito não seja esvaziado, ele deve ter conotações de “luta pelo poder e legitimação do poder” (p. 195). É preciso, portanto, retornar à essência da ideologia: a dominação. Zizek (1996) afirma que estamos dentro do espaço ideológico no momento em que o conteúdo da ideologia (seja ele verdadeiro ou falso) é funcional com respeito a alguma relação de dominação social “de uma maneira intrinsecamente não transparente” (ZIZEK, 1996, p. 13-14). É por isso que Bourdieu procura substituir o conceito de ideologia por conceitos como “dominação simbólica”, “potência simbólica” ou “violência simbólica” (BOURDIEU e EAGLETON, 1996). A dominação, para Bourdieu (2007), não é o efeito direto e simples da ação exercida por um conjunto de agentes (“a classe dominante”) investidos de poderes de coerção. Ela é o efeito da estrutura de um campo, no qual profissionais da produção simbólica “enfrentam-se em lutas que têm como alvo a imposição de princípios legítimos de visão e divisão do mundo natural do mundo social” (BOURDIEU, 2007, p. 83). Por isso, pensar a “gestão social como gestão pública não estatal” requer, como diria Bourdieu, a superação do “pensamento de Estado”, “presente no mais íntimo de nosso pensamento” (p. 93), que leva à imposição de “escolhas de Estado” que acabam por descartar muitas “possibilidades de existência” (p. 94). Bourdieu (2007) argumenta que com a “evolução das sociedades” há o surgimento de universos relativamente autônomos (ou campos) com leis próprias que são, geralmente, tautologias. Neles os participantes agiriam não conforme sua intenção consciente, mas a partir de disposições “incorporadas” (habitus) - presentes nas mentes e nos corpos - que dão o “sentido do jogo” (illusio) e suas regularidades, estruturando tanto a percepção do mundo como a ação no mundo. Bourdieu (1989, p. 15), acredita que a destruição deste “poder de imposição simbólico radicado no desconhecimento supõe a tomada de consciência do arbitrário”, quer dizer, “a revelação da verdade objetiva e o aniquilamento da crença”. Isto se dá na medida em que o “discurso heterodoxo destrói as falsas evidências da ortodoxia” e lhe “neutraliza o poder de desmobilização”, criando “um poder simbólico de mobilização e de subversão”, capaz “de tornar atual o poder potencial das classes dominadas”. O argumento de Bourdieu aqui parece próximo do de Lukács, para quem há “certas formas de conhecimento – em especial o autoconhecimento de uma classe explorada – que, embora rigorosamente históricas, são capazes de desnudar os limites de outras ideologias e, desse modo, desempenham o papel de forças emancipatórias” (EAGLETON, 1996, p. 181). Nesse sentido, o proletariado, a partir da auto-reflexão, teria uma condição privilegiada para “a emancipação potencial de toda a humanidade” (p. 182). Bourdieu, no entanto, não acredita em uma capacidade de dissidência ou ruptura por parte do “proletariado”, pois quanto “mais se desce na escala social, mais eles acreditam em talentos ou dons naturais, mais acreditam que os que alcançam êxito são dotados de capacidades intelectuais inatas. Quanto mais aceitam sua exclusão, mais aceitam que são burros”. “A capacidade de dissenção é muito importante; ela realmente existe, mas não onde a procuramos” (BOURDIEU e EAGLETON, 1996, p. 269.) Bourdieu tem sido questionado por enfatizar demais a função naturalizadora da ideologia (doxa), minimizando a capacidade de que as pessoas possam ser críticas ou céticas em relação às formas de poder vigentes, muito embora os tolerem (EAGLETON, in BOURDIEU e EAGLETON, 1996, p. 268). Bourdieu, por sua vez retira o problema da questão da consciência (falsa consciência, inconsciência, etc.), afirmando que os principais efeitos ideológicos são http://rgs.wiki.br 4/16
  • 5. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # transmitidos “pelo corpo”. “O principal mecanismo de dominação opera pela manipulação inconsciente do corpo” (p. 269). Se pensarmos nestes termos, o trabalho de emancipação é muito difícil: “é tanto uma questão de ginástica mental, quanto de conscientização” (p. 270), ou seja, implica em uma total transformação do habitus. Apesar de Bourdieu (2005a) afirmar que o habitus não se encerra com o indivíduo socializado, estando sujeito a experiências que reforçam ou modificam suas estruturas; e que os dominados, em qualquer universo social podem exercer certa força, produzindo efeitos no campo, eles (os dominados), muito dificilmente escaparão à dominação. Isto porque, em sua ótica, não conseguiriam superar a lógica (ideológica) do próprio campo, ou seja, superar o jogo. Logo, as estratégias possíveis são sempre orientadas para o jogo dentro do campo, onde se tenta passar da posição de dominado a dominador. Dubet (1994, p. 78) argumenta que na obra de Bourdieu “o único indivíduo real, o único sujeito possível, é o sociólogo desligado do habitus ‘vulgar’ e do habitus ‘culto vulgar’ graças à sua própria história e à sua própria auto-análise, que se torna possível mediante uma travessia excepcional de diversos habitus, que permitem a sua objetivação”, ou seja, o que aconteceu com o próprio Bourdieu. Será que transformações na visão de mundo acontecem somente a acadêmicos? Acreditamos que não. Por isso, é preciso sustentar a tensão que mantém viva a crítica da ideologia: a de que existe um lugar “que nos permita manter distância em relação a ela, mas esse lugar de onde se pode denunciar a ideologia tem que permanecer vazio, não pode ser ocupado por nenhuma realidade positivamente determinada; no momento em que cedemos à essa tentação, voltamos à ideologia” (ZIZEK, 1996, p. 22-23 - grifo do autor). Que lugar seria este? Esperamos que os elementos empíricos contidos neste estudo possam lançar luz sobre essas e outras questões até aqui levantadas e que são fundamentais para a Gestão Social. O estudo empírico O presente trabalho é fruto de um estudo de campo que vem sendo realizado no bairro Arquipélago em Porto Alegre desde 2007. Trata-se de uma pesquisa qualitativa (TRIVIÑOS, 1995) na qual utilizou-se da análise documentalii e da observação, sistemática e assistemática (SELLTIZ et al. 1965), nas reuniões dos principais fóruns do território. Além disso, foram realizadas entrevistas com lideranças que representam as principais organizações atuantes no território e com representantes do Programa de Governança Solidária Local da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e da ONG. A análise dos elementos coletados seguiu uma orientação dialético-hermenêutica, a qual considera dois níveis de interpretação: o primeiro está relacionado com o contexto sócio-histórico do qual faz parte o grupo a ser estudado; o segundo baseia-se no encontro com os fatos surgidos na investigação – comunicações individuais, observação de condutas e costumes, análise das instituições e cerimônias, etc. (MINAYO, 1999). Contexto Sócio-histórico do Arquipélago O Arquipélago é um dos bairros de Porto Alegre e foi constituído pela lei nº 2022 de 07/12/1959. Em 1976, por decreto oficial, o Arquipélago passou a fazer parte do Parque Estadual do Delta do Jacuí (PEDJ) e, em 1979, o governo Estadual institui o Plano Básico do Parque com o objetivo de disciplinar a ocupação e evitar a degradação ecológica, ficando a administração do bairro a cargo da Fundação Zoobotânica. (OBSERVATÓRIO, 2008). Observou-se, nos últimos tempos, um aumento significativo da ocupação nas quatro ilhas habitadas da região (Pavão, Grande dos Marinheiros, Flores e Pintada). Segundo dados do IBGE, ObservaPOA e SEBRAE, a população do Arquipélago apresentou uma variação de 2.634 pessoas (1996) para 5061 (2000). Atualmente a Prefeitura estima que mais de 12 mil pessoas morem na http://rgs.wiki.br 5/16
  • 6. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # região. Diante dessa expressiva presença humana no território, no ano de 2005 uma parte do bairro passa a ser Área de Preservação Ambiental Delta do Jacuí (APAEDJ), a partir da Lei Estadual 12.371/05, que definiu os limites do Parque e da Área de Proteção Ambiental. As terras pertencentes aos limites da APAEDJ são de uso privado e pertencem aos seus proprietários que já possuem o registro, ou podem ser regularizadas por aqueles que não possuem. Já as terras pertencentes ao PEDJ deverão ser adquiridas pelo Estado do RS, pois são áreas destinadas à “proteção integral dos ecossistemas sem a presença da ocupação humana”. Os termos de referência para a regularização fundiária e os Planos de Manejo ainda estão em elaboração por “equipes técnicas”, o que, obviamente, não inclui membros da comunidade. Esta pode participar do Conselho Deliberativo da APAEDJ, que tem como finalidade proporcionar alternativas para a resolução dos problemas de ordem social, econômica e ambiental (doc. da APAEDJ). As Ilhas possuem constituições históricas e geográficas diferentes entre si, o que configura a existência de diversos territórios dentro de um mesmo bairro. A Ilha da Pintada, por exemplo, possui uma característica de pessoas nascidas no próprio local, pescadores que ali se instalaram na época da colonização açoriana, além de descendentes de escravos e antigos trabalhadores da construção naval. Perfil extremamente diferente tem a Ilha Grande dos Marinheiros e do Pavão que, por serem mais próximas ao centro da Capital, são habitadas, em sua maioria, por carroceiros e catadores. Há também a Ilha das Flores, habitada, em sua grande maioria, por trabalhadores da construção civil, pescadores e domésticas. Até o final da década de 1980 havia, na Ilha Grande dos Marinheiros, criação de porcos, que gerava sustento para muitas famílias, mas que foi proibida a partir da (medi)ação do Ministério Público, com vistas à preservação ambiental – uma solução simples para um problema complexo, definição que serve bem para a palavra ideologia. Restou à população intensificar o trabalho na coleta e separação do lixo, sendo ali fundado, sob a tutela da Prefeitura, o primeiro galpão de reciclagem de Porto Alegre. Alguns de seus moradores afirmam, inclusive, ter inventado “a coleta seletiva na cidade de Porto Alegre”. A coleta de materiais recicláveis também é a fonte de sobrevivência dos moradores da Ilha do Pavão, porém a atividade é feita individualmente, no pátio das casas. A maioria dos levantamentos socioeconômicos apresenta “dados” desfavoráveis sobre a região. A análise multidimensional da pobreza em Porto Alegre (COMIN et al, 2006), aponta que os índices da região situam-se abaixo da média geral da cidade nas questões de Saúde, Nutrição, Educação, Conhecimento, assim como no quesito qualitativo de “amizade e confiança”. Por outro lado, em três indicadores, de caráter qualitativo (participação, solidariedade e liberdade/satisfação), a região supera a média da cidade. Diante disso, fica-se com a percepção de que a “pobreza” do bairro Arquipélago tem algo de muito específico: diz respeito à falta de acesso a bens e serviços públicos básicos e não à fragilidade dos laços sociais, nem da participação cidadã. Contudo, conclusões com base em dados numéricos pode ser um recurso ideológico, por mostrar uma parte da realidade como se fosse o todo. Não mostra a história de luta daqueles habitantes pelo seu direito de existir e também que aquele lugar é um espaço bastante disputado para investimentos imobiliários. Condomínios que ali se instalam anunciam o paraíso natural e a facilidade de chegar ao centro de Porto Alegre em apenas 15 minutos. Há residências à venda que ultrapassam o valor dos dois milhões de reais e inúmeras marinas que oferecem uma gastronomia requintada, sendo palco de festas que incluem entre as atrações shows de artistas nacionais. Alguns dos mais tradicionais clubes de Porto Alegre têm ali sua sede. Isso tudo faz com que o fato de morar no Arquipélago seja algo em si contraditório. Para as classes mais altas é questão de estilo; para a população local é sinônimo de estigma. Enquanto as http://rgs.wiki.br 6/16
  • 7. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # margens dos rios são ocupadas por luxuosas “casas de veraneio”, a população se espreme no espaço que sobra (às margens da rodovia ou entre a rua e o banhado) e tenta vislumbrar, entre os altos muros das mansões, um pouco da paisagem do rio. Mas há contradições dentro da própria população local. Como relata uma liderança, “são várias as questões”: a “questão do carroceiro”; “a questão dos galpões, que está ligada diretamente ao lixo”; “a questão dos pescadores” que acusa o carroceiro de sujar o rio. “Há briga entre as entidades e estrelismo”. Muitos afirmam que as lideranças estão “viciadas”; “não tem contato com a base”; “só aparecem em eleição”; se sentem poderosos por ocuparem uma posição reconhecida, e ainda impedem outros de participar. Como exemplo, temos as brigas entre as duas associações de carroceiros, pois uma delas é ligada à Força Sindical, enquanto a outra é vinculada ao Movimento Nacional dos Catadores. Esses exemplos sinalizam que muitas lideranças locais perseguem interesses muito mais ideológicos do que solidários, ou emancipatórios. Participar, por exemplo, dos conselhos e fóruns locais não interessa Apesar das divisões territoriais e ideológicas, existe no Arquipélago um grupo de lideranças e de entidades com representatividade das principais ilhas que buscam a integração e a construção coletiva de melhorias para os “ilhéus”. Elas lutam para fazer com que a comunidade tome ciência da importância das questões que ali são tratadas. Afirmam não se importar de “ficar na sombra”, de que outro vá à frente das ações, e reconhecem que a sua causa e a causa do outro são semelhantes. “Eu luto pelo reconhecimento da minha cidadania, mas a luta não é só minha... Minha relação é com a comunidade...não é de voto e de cargo”. “É uma questão de “consciência” (líder comunitário). “Minha luta é sempre feita com muito amor e não com enfrentamento [...]. Não é por sigla ou por ideologia, mas pela comunidade” (coordenadora da RIPCA). Elas trabalham incessantemente para “ocupar todos os fóruns de discussão do território para não dar brecha para manobras” – como o Conselho da APAEDJ e o Fórum Regional do Orçamento Participativo (FROP). Um dos principais fóruns tem sido a Rede Integrada de Proteção à Criança e Adolescente (RIPCA). O encontro com a Realidade da Gestão Social do Território no Arquipélago Criada em 1999, a RIPCA não é apenas uma organização formal cuja “função” é discutir apenas questões relativas à criança e ao adolescente. Trata-se de uma formação organizacional de base territorial que é fruto de uma síntese de processos anteriores de mediação (Orçamento Participativo, Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente). Desde 2000 a coordenação foi assumida por lideranças locais que a apresentam como “um espaço de articulação local, político e apartidário” que discute as demandas gerais da comunidade. Não possui espaço físico, equipamentos ou funcionários, apenas um livro de Atas e suas reuniões acontecem quinzenalmente na casa da AVESOL (Associação do Voluntariado e Solidariedade, entidade ligada aos maristas) na Ilha Grande dos Marinheiros. Quando a atual gestão assumiu o município (em 2005), após 16 anos de governo do PT, a RIPCA foi associada ao governo anterior e a Prefeitura tentou minar as bases da rede e fazer com ela se detivesse à sua função específica: a proteção à criança e ao adolescente. Isso gerou resistências por parte da coordenação. Essa resistência levou a Prefeitura a demitir a coordenadora anterior da RIPCA que era funcionária da FASC (Fundação de Assistência Social e Cidadania). “A prefeitura boicotava tudo, mas nós resistimos com amor” (coordenadora da RIPCA). Atualmente a RIPCA é coordenada por uma moradora local, liderança reconhecida pela comunidade, que afirma que a situação mudou. “A atual coordenadora regional da FASC tem uma ótima compreensão da rede, diferente da anterior” (coordenadora da RIPCA). A comunidade reconhece a RIPCA mais do que o Centro Administrativo Regional (CAR- Ilhas) da Prefeitura como organização legítima para encaminhar suas demandas ou prestar http://rgs.wiki.br 7/16
  • 8. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # esclarecimentos sobre os mais diversos assuntos. As reuniões da RIPCA são um espaço para o desabafo dos moradores da comunidade acerca de seus problemas quotidianos, que vão desde o “cachorro da vizinha” e a poda de galhos de árvores até as gangues de jovens e o consumo de drogas. Também o poder público, estadual e municipal, reconhece a legitimidade deste espaço através da presença constante dos “serviços” (áreas ligadas à educação, assistência social e saúde) nas reuniões. Problemas de violência e uso de drogas, por exemplo, são encaminhados para os “serviços”. Porém, muitos casos são resolvidos pelas próprias organizações da comunidade, por meio de líderes comunitários (lideranças ligadas a pastorais sociais como a Pastoral da Criança). Elas organizam grupos de convivência, que procuram atender a uma demanda que o Estado não consegue dar conta. A RIPCA passou a ser um local onde as pessoas encontram orientação, sendo realmente “integrada” e integradora. Ela cria comissões, envia correspondências e solicita esclarecimentos a órgãos públicos e organizações da comunidade. Por vezes, nessas reuniões de esclarecimento, há um clima de tensão, mas, como salienta a coordenadora, assim ficam sabendo “quais são os mecanismos do território; sabem que existe uma rede” e “que o território tem inúmeros segmentos, inúmeros fóruns”. Quando as soluções não são conseguidas via RIPCA, a comunidade o consegue a partir de manifestações e protestos organizados. Para isso conta com a experiência de organizações ligadas a movimentos sociais como as associações de carroceiros. Elas realizam a prática do “bafão” junto à Prefeitura ou a interrupção da rodovia para exigir que o Estado e suas organizações encontrem soluções rápidas para problemas urgentes, como as cheias, a falta de energia elétrica, entre outras. Há registros de protestos, mobilizações e marchas em direção à prefeitura que datam de mais de uma década. Elas se intensificaram durante o período de discussão da “Lei dos carroceiros” (Lei 10.531/08 que proíbe a circulação de carroças no centro da cidade). Essa é uma lei de interesse da Prefeitura que, para lidar com os seus desdobramentos, lançou mão da equipe do Programa de Governança Solidária Local (PGSL). A Mediação da Prefeitura e a IDEOLOGIA da gestão “do” social no território Com a mudança da gestão na prefeitura, surge uma nova mediação do poder público municipal, através do Programa de Governança Solidária Local (PGSL). A organização do PGSL se dá sob a forma de uma Rede de Articulação intersetorial e multidisciplinar, composta pelo Prefeito, Secretários, Secretários Adjuntos, Coordenadores de Secretarias, Comitê Gestor Local, Articuladores de Governança e parcerias sociais locais e parcerias estratégicas – Poder Público/Iniciativa Privada/Terceiro Setor – através das suas mais diversas representações: OP, Fóruns de Planejamento, Conselhos Setoriais, Entidades, Igrejas, Empresas, Redes Econômicas, etc. (BUSATTO, 2005), tudo isso estaria perfeitamente integrado em um “todo sistêmico”. Foi esta rede de articulação que tentou substituir a RIPCA como elemento de coordenação dos esforços no Arquipélago. Além da construção dessa rede, a implantação do PGSL no Arquipélago, previu, como passos iniciais, a realização dos Seminários Visão de Futuro e a celebração do Pacto pela Governança Solidária Local. No que diz respeito à elaboração da visão de futuro, o processo procura despertar o “sonho” da comunidade, a partir da “técnica da explosão de idéias”. E aí nós vamos trabalhando de acordo com aquilo que eles colocaram de prioridade. E nós trabalhamos sempre com as metas do milênio, então o sonho vai até 2016 [...]. Por exemplo, regularização fundiária: era uma coisa que aparecia muito, [...] e nós: ‘Não, mas isso aqui não é o s... [sonho]. Isso aqui nós estamos tratando enquanto prefeitura. Não é sonhar’. Sonhar é pensar que eu quero cultura, que eu quero me capacitar, que eu quero melhorar a vida... Que o empresário, se ele melhorar o seu entorno, ele vai ter menos violência, ele vai melhorar a sua empresa. Então essa é a visão que a gente tem http://rgs.wiki.br 8/16
  • 9. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # que fazer com que as pessoas cheguem. Mas por, por (sic) elas né. (membro da coordenação do PGSL – grifo nosso). De fato, a “regularização fundiária”, um “sonho” da maioria dos ilhéus, não aparece entre 10 ações prioritárias no Arquipélago. Compreenderemos o motivo mais adiante. As Coordenação do PGSL revelou que as regiões consideradas modelo, inclusive com direito à premiação, são as que mais rápido conseguem realizar o “Pacto pela Governança”, evento simbólico que marca o início do programa, no qual o prefeito vai até o local e assina um documento diante da comunidade. Regiões como a Noroeste e Humaitá/Navegantes (da qual o Arquipélago fazia parte) são consideradas as mais problemáticas, pois ali o “pacto” só foi realizado após um ano e meio. No Arquipélago, até o presente momento (passados cerca de 4 anos do início do programa), ele ainda não aconteceu. A ação que é destacada pelo PGSL no Arquipélago é a oficina “Educar para a paz e mediação de conflitos”, que teria resultado na instalação do primeiro comitê de paz nas ilhas. Até onde se sabe esse comitê não funciona. Depois dessa dinâmica inicial, o PGSL passou a ser operacionalizado pelo Comitê Gestor (CG). Os Comitês Gestores em tese seriam compostos pelos coordenadores dos Centros Administrativos Regionais (CAR), por conselheiros do Orçamento Participativo (OP), por agentes governamentais representantes de secretarias e órgãos do governo municipal e pelo Articulador da Governança Solidária Local. Porém, na prática, ele é um “Comitê Gestor da Prefeitura”. Quem participa do CG é o coordenador do CAR - Ilhas, que “pega as demandas de serviços normais” daquela região e as discute com os representantes das secretarias da prefeitura em reuniões mensais. Os delegados do OP têm a função apenas de levar até o CAR as demandas do Arquipélago que serão discutidas nessa reunião. Embora a Prefeitura negue que o programa seja uma tentativa de acabar com o Orçamento Participativo, as falas de seus representantes e o material gráfico do PGSL afirmam que o programa supera o OP por não envolver recursos e que, por isso, não geraria disputas entre regiões. Os recursos seriam oriundos de projetos e parcerias buscados pela comunidade com apoio da Prefeitura e ONGs. Diante disso, há uma preocupação em qualificar as ONG´s “para a compreensão e a prática de elaboração e gestão de projetos e de captação de recursos”, através do CapacitaPoA, pois existem muitas “verbas para projetos que retornam e não são aplicadas”, o que faz com que os profissionais procurem “tapar buracos” realizando ações de última hora para cumprir prazos. Muitos recursos dos projetos são utilizados não na comunidade, mas em ações superficiais e na própria máquina burocrática (o que observamos não só no caso da Prefeitura, mas nas demais organizações do Estado). Desenvolver a “cultura da solidariedade”, ampliar a “ética da solidariedade” com base na “territorialidade” são termos empregados em várias passagens do farto material gráfico produzido pelo programa, com referência a teorias sobre governança. Mas o que, de fato, se observa é que o programa está estruturado para atingir objetivos “estratégicos” da Prefeitura, norteados pelas “Metas do Milênio da ONU, por meio do Programa Estratégico para o Alcance das Metas de Inclusão Social.” (PREFEITURA MUNICIPAL, 2005 p. 6). A coordenação afirma que a proposta do programa é “melhorar a vida das pessoas”, “de todas as classes”. “Nós trabalhamos com a capacitação, nós trabalhamos todas as formas de melhorar a vida das pessoas....sem que elas saiam do seu local”. Entretanto, o PGSL está presente “em todos os assentamentos que estão sendo feitos na cidade”, “melhorando a vida das pessoas [...] tirando da beira do arroio” e “dando uma casa”, mas as “pessoas não estão preparadas para aquela casa” (membro da coordenação do PGSL – grifo nosso). No que diz respeito ao Arquipélago, o PGSL esteve diretamente envolvido na regulamentação da “Lei dos carroceiros” e tem sofrido a pressão do Ministério Público Estadual (MPE) para o cumprimento dos prazos e das “metas de transposição dos segmentos envolvidos em http://rgs.wiki.br 9/16
  • 10. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # coleta seletiva para outras atividades” (doc. do MPE). Nisto se observa que por trás da proibição da “circulação de carroças”, está a intenção do MPE, manifesta a partir de uma ação civil pública contra o estado do Rio Grande do Sul e o município de Porto Alegre, que visa a “implementar efetivamente o Parque Estadual Delta do Jacuí”, retirando as pessoas que ocupam “áreas de risco” e resolvendo o “problema” da atividade de coleta e separação de lixo feita pelos carroceiros nas ilhas (doc. MPE). Após um período ausente do território (curiosamente o período em que se discutia a “Lei dos carroceiros”), os membros da coordenação do PGSL retornam ao território no final de 2009. Estavam ali para sensibilizar as lideranças da comunidade para o preenchimento Cadastro Único para Programas (CadÚnico), que objetiva a inserção das famílias de baixa renda em programas sociais, projetos e ações governamentais das esferas federal e estadual. Para este cadastro, havia recurso do Governo Federal que deveria ser aplicado até o final do ano. Mas não era só isso o que justificava a pressa dos membros do PGSL e a escolha do Arquipélago como a primeira região de Porto Alegre para o cadastramento. Ele também seria uma “alternativa” para a Prefeitura cadastrar os carroceiros, um dos requisitos da “regulamentação” e “plena vigência” da “Lei dos carroceiros”. Veremos os desdobramentos dessa mediação mais adiante. Por ora é preciso analisar a mediação de uma ONG com vistas ao Desenvolvimento local do território (doc. Prefeitura). A Mediação de uma ONG e a UTOPIA da gestão “do” social no território A ONG em questão participou ativamente, com a CUT, do processo de redemocratização do país, iniciando assim o trabalho de assessoria a movimentos populares e a sindicatos urbanos e rurais no Rio Grande do Sul. Após a experiência de trabalho junto ao Governo Olívio Dutra (PT), em que procurava desencadear, em diferentes regiões do RS, a construção de um Projeto de Desenvolvimento Regional Alternativo (PDRA), passou a direcionar suas ações para a o Desenvolvimento Local (DL). Com a redução dos recursos permanentes dos parceiros das agências de cooperação internacional a ONG optou, no final de 2005, por priorizar a formação de agentes e a inserção/acompanhamento a duas comunidades na Região Metropolitana de Porto Alegre, uma delas o Arquipélago. Buscava, com isso, fortalecer os processos de DL e construir alternativas de trabalho e renda (doc. ONG). Mesmo com um conjunto de iniciativas e projetos ali desenvolvidos, a ONG não conseguiu reunir todos eles em uma proposta de desenvolvimento integrada. Trabalharam então para que a comunidade, a partir de uma reflexão conjunta, pudesse escolher os projetos de interesse coletivo. Realizaram uma primeira oficina, em outubro de 2006, que teve como objetivos a sensibilização para realização de um diagnóstico participativo e a mobilização dos participantes para um seminário sobre Desenvolvimento Local. O público participante da oficina foi em sua maioria representantes da Ilha das Flores, onde o encontro aconteceu. A questão da cultura ficou marcada como fator de integração nas ilhas, e com isso foi realizada uma mostra cultural de talentos em janeiro de 2007, realizada na Ilha Grande dos Marinheiros. Porém, houve dificuldades em reunir lideranças representativas de todas as ilhas, resultando na participação majoritária de pessoas da Ilha Grande dos Marinheiros. Concluem que a preparação da mostra cultural constituiu-se em uma proposta “da ONG”, não havendo a integração e participação efetiva dos atores locais. Com isso a intenção de articulação e fortalecimento de um coletivo não conseguiu ser alcançada. Ainda em 2007, a ONG promove um seminário sobre Desenvolvimento Local, que contou com a participação de aproximadamente 30 pessoas, entre associados e lideranças de entidades e grupos das ilhas. A intenção era que houvesse outros seminários posteriormente, tendo sido escolhido o tema da geração de renda e a economia como o tema do encontro posterior. Porém, nas discussões internas da ONG, foi percebido que a tendência deste espaço era transformar-se no espaço “da ONG” no Arquipélago e não um espaço efetivamente da comunidade local (doc. ONG). http://rgs.wiki.br 10/16
  • 11. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # A equipe da ONG vivencia então um momento importante de dúvida. De um lado, pensam em fortificar a reflexão sobre a questão econômica, unir grupos produtivos e pensar as ilhas com seu potencial turístico. De outro, analisam o fato de que a geração de renda é um fator desagregador, pois há muitas divergências entre setores de produção. Questionam se a linguagem utilizada não é um tanto abstrata, quando se trabalha com um público em extrema vulnerabilidade social. Percebem também que o Arquipélago é um território onde muitas pesquisas e tentativas de implantação de projetos já ocorreram, muitos deles sem êxito. Isso se reflete na desconfiança e no receio da população local em relação a novos atores e projetos. A ONG conclui que, assim como é encontrado em comunidades carentes de uma maneira geral, existe a espera por políticas públicas e ações assistencialistas para resolução dos problemas. Ao trabalhar-se o “protagonismo, a cooperação, a geração e distribuição de riquezas no território, a partir de uma organização e articulação dos atores ali presentes, o Desenvolvimento Local encontra grandes desafios já interiorizados nos indivíduos”. Contudo, um integrante da ONG questiona se esse não seria um “jogo das pessoas pobres” e que faz parte da “ação coletiva” daquele grupo, da sua “estratégia” de “gestão social”, para a qual “estão plenamente conscientes de que vai dar resultado”. “Falta de participação e falta de consciência” fariam, portanto, parte de um discurso que o poder usa e que “a gente às vezes está envolvido”. O que há no Arquipélago seria um processo, onde existe a tese de que as “pessoas pobres estão viciadas em um assistencialismo” e “se negam a participar”. A antítese seria, para a ONG, o PGSL da Prefeitura, que “representa uma política neoliberal que quer deixar de fora o conflito”, privilegiando o consenso. Mas há, acima de tudo, “um processo de autogovernança”, a partir da participação da comunidade em fóruns locais de discussão dos problemas, como a RIPCA. A partir dessa constatação, a ONG passa a participar assiduamente das reuniões da RIPCA. Em 2007, em uma das reuniões, é convidada, pela Prefeitura a executar uma política pública da Fundação de Assistência Social e Cidadania – FASC, o Projeto Ação Rua, desenvolvendo um trabalho com crianças do arquipélago em situação de rua. Com base neste diálogo com a comunidade a ONG reorienta seu trabalho. Temas como o da criança e adolescente, cultura e regularização fundiária aparecem como capazes de mobilização comunitária e sensibilização de pessoas mesmo com idéias diferentes. A ONG passa a tentar fortalecer os espaços e organizações já existentes, o que leva a uma discussão mais ampla do desenvolvimento do território, para além da perspectiva econômica. Por fim, diante da sugestão de uma liderança local na reunião da RIPCA para que a ONG assessorasse as discussões sobre a APAEDJ, esta decidiu “dar uma parada no formação de agentes”, (tendo inclusive de se justificar perante seus financiadores internacionais) e passou a organizar reuniões de esclarecimento e discussão com a comunidade do Arquipélago sobre essa questão. Nessas reuniões foi observada a presença de lideranças de outras organizações que costumavam não participar. Lideranças, ONG e PGSL no espaço da Gestão Social do Território A tentativa do PGSL de realizar o cadastro dos carroceiros fez com que a coordenação e seus agentes “cruzassem a ponte” para participar de diversas reuniões no Arquipélago. Uma delas foi realizada na capela da Nossa Senhora Aparecida, na Ilha Grande dos Marinheiros. Ali estavam presentes lideranças da comunidade, carroceiros e representantes da ONG. Após muita exposição por parte do PGSL sobre como funcionaria o cadastro, com a comunidade escutando silenciosa e perplexa, a representante da ONG pede a palavra. Em sua fala, diz que o “cadastro é secundário”, que antes dele deveriam discutir a “Lei” e as “políticas públicas para os carroceiros”. Foi o http://rgs.wiki.br 11/16
  • 12. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # estopim para as manifestações que se seguiram por parte dos representantes dos carroceiros e das lideranças da comunidade. “Vocês representantes prometem mil e uma coisas e não acontece nada...Vocês querem todos os nomes, de mãe, de filho...Mandam pro Governo Federal e cadê o recurso? Vocês primeiro apresentem uma proposta, depois façam o cadastramento” (líder da Associação dos Carroceiros “X”). “O Povo não vai mais acreditar nesse negócio. O OP foi todo aprovado e não veio um tostão pra nada” (líder comunitário). “Teve várias reuniões de portas fechadas com políticos e agora [a Prefeitura] vem com cadastramento...Os galpões [de reciclagem] são uma vergonha! O pessoal ganha uma miséria...Qual é o projeto que a Prefeitura tem além de galpão? O que vão fazer com os cavalos? Vão virar salame lá em Pelotas? Tem ONGs que ganharam milhões usando nós... Queremos projetos pros filhos dos carroceiros” (líder da Associação dos Carroceiros “Y”). “O cadastro vai trazer desconfiança por tantas violentações que já sofreram... A culpa é de um sistema opressor que não atravessa a ponte... As leis são construídas arbitrariamente” (coordenadora da RIPCA). “Vamos falar em política pública. Ele [apontando para o líder Associação dos Carroceiros “Y”] já sabe o que cada um [dos carroceiros] quer, que um vai ser plantador, etc.” (líder comunitária). Diante das colocações, os representantes da Prefeitura reagem. “Nós contamos ou contávamos com as representações [lideranças] para chegar às pessoas... É nosso total interesse saber como essas pessoas vão sobreviver, ninguém é tão burocrático... Queremos identificar e cadastrar no SINE... Está-se pensando em outras coisas” (coordenadora do PGSL). “Não tenho o menor propósito de prejudicar ninguém, sou concursada de carreira” (funcionária da Prefeitura). “A gente não ta aqui como inimigo...Idéias, o grupo tá cheio de idéias, mas não sabe se elas são compatíveis com a realidade... Tem o projeto de um grupo de alunos da UFRGS para os cavalos...” (coordenadora do PGSL). Neste momento, um dos líderes dos carroceiros, que havia participado de inúmeras reuniões com membros da Prefeitura e elaborado diversos projetos, reage indignado. “Eu dei duzentas aulas com filhinho de papai falando no celular e vocês vêm falar em projeto da UFRGS!” (e se retira da reunião). Uma antiga liderança das Ilhas pede a palavra e se dirige à coordenadora do PGSL. “Isso aí há muitos anos atrás já vem essa história de tirar as carroças...Minha preocupação é com as pessoas que saem da prisão...Tu daria emprego sabendo que foi prisioneiro, mesmo que tenha feito poucas coisas?” E conclui “Não estamos mais naquele tempo que davam canetaço. Hoje o povo manda”. Ao final da reunião, diferentes visões da realidade acompanham as soluções propostas. A ONG aponta para a política de reciclagem com a garantia do trabalho dos carroceiros com o lixo “nobre” do centro da cidade. A prefeitura, quer aproveitar “que tem verba” do Governo federal para realizar seu cadastro, pois faz parte das exigências da “Lei dos carroceiros”. Desconhecendo os inúmeros projetos já elaborados pela comunidade (Guarda Parque, viveiros de mudas nativas, etc.), apresenta como solução a capacitação para o “mercado de trabalho”; não entende a resistência da comunidade e toma as críticas à organização “Prefeitura” como ofensas pessoais. A comunidade, por sua vez, diante das inúmeras promessas e da falta de um projeto que permitiria aos carroceiros mudar de vida, apega-se ao cadastro como moeda simbólica de suas reivindicações, pois reconhece que existem interesses que vão além da boa vontade dos representantes do PGSL. “Não é o problema de vocês. Você quando está se interando do problema e começa a exigir é demitido, ou trocado de lugar. Nós temos vários exemplos” (líder comunitário). A partir dessa reunião, representantes do PGSL começam a participar das reuniões da RIPCA e se fizeram presentes na reunião do Fórum Regional do Orçamento Participativo, na Ilha das Flores. Novamente as lideranças dos carroceiros manifesta sua posição em relação ao descaso da http://rgs.wiki.br 12/16
  • 13. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # Prefeitura para com a população do Arquipélago. “O primeiro problema da prefeitura é tirar o carroceiro” e lembra da diminuição das “metas” (número de crianças atendidas) do “SASE” (organização local que recebe recursos da Prefeitura para atender as crianças). A coordenação do PGSL manifesta-se em tom diferente da reunião anterior. “Nós estamos com a faca no pescoço, porque o Ministério Público vai cobrar”. “As coisas não foram resolvidas... O Comitê Gestor deveria fazer a conexão, mas não está fazendo” (coordenadora do PGSL). “Puxa vida, eu tô com tanto gás, será que eu não vou conseguir?... Eu não gostaria de frustrar e sair frustrada...” (agente do PGSL). “Quando se sentou para elaborar essa lei... esqueceram que tem vidas...E não se lida com vidas como se lida com letras” (coordenadora da RIPCA). “O comitê [de regulamentação da Lei dos carroceiros]...se reuniu... e tentou preparar uma lei mais bem feita. Pra nós foi totalmente frustrante a votação no Ministério Público[...]. Então ficou a Lei escrita pelo [vereador X]” (coordenadora do PGSL) “Quando eu olho pra essa lei... Puxa vida, como vão tirar esse povo daí...Essa atividade...Ninguém precisa ter a mesma bandeira, mas um objetivo a gente pode ter... Depois que sair daqui podemos levantar a bandeira” (agente do PGSL). Uma das lideranças dos carroceiros, admirada, exclama: “Isso é utopia, hein?!” Conclusão O presente estudo iniciou com uma questão importante para compreender “as interfaces e delimitações entre gestão pública e gestão social”: “É possível separar administração e política”? A partir do presente estudo, pode-se concluir que não. Isto porque a dimensão “social” da gestão implica em reconhecê-la como um processo dialético, no sentido hegeliano do termo, com sua imediaticidade, suas mediações e suas superações. Daí que ver a Gestão Social como um sistema, que separa funções gerenciais e funções políticas e as trata as como um todo orgânico é uma visão ideológica, porque esconde as muitas contradições que existem em seu seio. Por trás dessa visão está a idéia que se reproduz como modelo de gestão pública: a de uma máquina eficiente que não considera as pessoas, e cujas decisões são tomadas pelos detentores do conhecimento técnico – ou seja, a burocracia no sentido amplo dado por Weber. No caso das mediações que ocorrem no Arquipélago, viu-se esta visão de sistema presente no momento em que leis são elaboradas e regulamentadas por equipes técnicas apenas, excluindo a comunidade. Isso acontece para que se tenha o máximo de racionalidade formal no processo, para que o fim não seja mudado em função de relações. No entanto, a equipe “técnica” tem suas relações, tem sua visão de mundo, que não é excluída quando se elaboram as normas. Por exemplo: os membros do Ministério Público e da Prefeitura só conseguem ver o problema do lixo e excluem de suas ações as grandes mansões e condomínios que se instalam no Arquipélago. Aqui se vê a ideologia como uma visão social de mundo (MANNHEIM, 1972; LÖWY, 2008), ou uma representação imaginária (ALTHUSSER, 2001), que busca justificar a dominação social de uma classe ou grupo sobre outro. Mas a ideologia pode ser vista também como um jogo social em que “atores” são dominados pelo habitus ou pelo campo (BOURDIEU, 2007). A queixa comum de quem trabalha com comunidades ditas “pobres” ou “carentes” é que há uma cultura de assistencialismo e clientelismo que impede que as pessoas se emancipem, que “tomem consciência”. Elas estariam presas ao jogo. Mas o que significa tal emancipação? Muitas vezes ela está associada ao discurso ideológico do empreendedorismo, legitimado pela academia, de que as próprias pessoas devem buscar, individual ou coletivamente, alternativas econômicas de sobrevivência e que esta deveria tornar-se a preocupação central de suas vidas. Esse discurso tem por trás modelos idealizados de desenvolvimento – verdadeiros ídolos da tribo – que, embora professem a “solidariedade” e a “cooperação”, acabam, não raras vezes, criando organizações pontuais que buscam a disputa por posições de poder e/ou recursos. São, muitas vezes, ações http://rgs.wiki.br 13/16
  • 14. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # destinadas ao “desenvolvimento” e “combate à pobreza”, ditados por organismos internacionais, com eficácia prática discutível, mas com incontestável eficácia política, que acabam por legitimar a ordem desigual. Troca-se as estratégias sem trocar o jogo, pois, sob o argumento da autonomia, mantém-se a dominação pelo campo econômico, ao passo que restringe-se a participação no campo político. Entretanto, mesmo uma suposta participação política pode revestir-se da ideologia, em que o Estado assume uma imagem mítica (um deus ou um demônio). Sendo assim, a idéia de “o Estado somos nós” é tão ideológica quanto a idéia de que “o Estado é o inimigo”. Ambas têm uma força ilocucionária de tal magnitude que não permite perceber as pessoas, suas posições e disposições nas organizações. Nesse casso, seria possível admitir que a ideologia “interpela” os sujeitos (ALTHUSSER, 2001), pois, como se observou, os membros do PGSL da Prefeitura incorporaram de tal forma o discurso da governança que acreditam ser ela a melhor solução, de modo que ,quando o discurso ortodoxo é contraposto pelo discurso heterodoxo da comunidade, se sentem ofendidos e agredidos em sua identidade. Os outros, percebidos como inimigos, são vistos como uma sigla, uma bandeira e não como pessoas. Trata-se daquilo que Hegel (2007) chamou de visão moral, em que “o dever constitui seu único e essencial fim e objeto”, e o pobre, esse “ser- outro”, “é uma efetividade completamente privada-de-significação”. As organizações (ongs, academia, governos) querem transformar a realidade desse outro em algo idêntico a si; querem moralizá-la, adaptá-la a seus padrões, torná-la espelho, mas sem os consultar. Entretanto, o insucesso na tentativa de formar um ator coletivo no território, ao menos no espaço destes 3 anos em que se está desenvolvendo a pesquisa, tanto por parte do PGSL, como da ONG, revela que a realidade resiste ao poder da ideologia. Diante dela “os pobres”, ou a “ralé” como diária ironicamente Jessé Souza, mobilizam diversas estratégias de luta e organizações sociais para sobreviver, materialmente e simbolicamente. Apesar de encontrarmos apatia e desencanto junto nas comunidades, isso não significa termos ali pessoas não conscientes, mas sim pessoas que não experimentaram outras formas de agir, ou que, tendo experimentado, descobriram ser estas inviáveis ou impossíveis. Isto porque, no plano político, a experimentação é muito arriscada para o poder dominante. Daí que poucos participam dos espaços deliberativos do território. Apesar disso, há, no Arquipélago, uma articulação dinâmica entre lideranças, organizações e movimentos sociais locais para a Gestão Social. O território tem seus “mecanismos”, ou melhor, seus espaços de gestão que são reconhecidos pelos moradores. A interação nesses espaços é capaz de transformar a visão de mundo ideológica de muitos dos seus participantes. No presente estudo, viu-se como a experiência da convivência com o “diferente” – a comunidade do território – é capaz de alterar muitos pré-juízos formais que estão na raiz dos prejuízos substanciais e materiais causados por políticas públicas desconectadas da realidade. Contudo, a transformação da visão de mundo não é resultado somente da participação nos espaços democráticos. No caso do Arquipélago, viu-se que algumas lideranças têm interesse em ocupar espaços coletivos que lhes dêem posições de poder no campo. Por trás disso existem jogos sociais que se situam em outros espaços, fora do território (o movimento, o partido, etc.). O que interessa é a luta política em si, seja ela de contestação ou de manutenção do status quo. Enquanto isso, outras lideranças têm interesse “emancipatório”. Estes, ao invés de serem “indivíduos” dominados pelo campo, são “sujeitos” que resistem à implantação de modelos dominadores e lutam para transformar a realidade dos demais moradores. Procuram ocupar os espaços pró-forma que o poder político constitui e transformá-los em espaços deliberativos sobre as questões que mais interessam aos Ilhéus. http://rgs.wiki.br 14/16
  • 15. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # A RIPCA é um desses espaços, cujas lideranças têm um interesse mais amplo e resistem a se ater apenas à “função” de tratar exclusivamente da temática da criança e do adolescente. Nela são tratados diversos assuntos relativos à comunidade que se sintetizam no exercício da solidariedade. Interessa mais tratar das questões urgentes do que discutir o “desenvolvimento” ou um “sonho” que muitas vezes não é o da própria comunidade. Isto porque só quem vive no território pode compreender a realidade. As intervenções de quem está fora são feitas, ou do ponto de vista da ideologia, ou da utopia. Aqui percebeu-se uma dialética entre transformação e manutenção que impede que sejamos simplistas e apontemos ideologia no Estado e a utopia nos movimentos sociais. Por outro lado, o “movimento” dos ilhéus não é nem ideológico, nem utópico. Ele reflete a organização social que acontece no topos, no cotidiano e foge ao enquadramento em uma luta por manter ou derrubar o poder. É uma luta que se sintetiza nas palavras “resistir com amor”. Apesar disso, ela não deixa de ser um movimento social que aspira, não à transformação do global, mas à defesa de valores universais que transformarão o local. Na discussão teórica inicial, questionou-se a respeito de qual seria o lugar onde é possível fazer a crítica da ideologia. Lugar este que “não pode ser ocupado por nenhuma realidade positivamente determinada” (ZIZEK, 1996, p. 23). O estudo revelou que este lugar talvez seja ocupado por algumas das lideranças do território. Por isso, o território seria o lócus privilegiado para se pensar a gestão social “como gestão pública não estatal”. Isto porque ali acontece, como diria Bourdieu (2007), a superação do “pensamento de Estado” que leva à imposição de “escolhas de Estado”. No entanto, fica ainda a questão sobre o porquê de algumas lideranças ocuparem este lugar e outras não. Espera-se poder responder a essa e outras questões em estudos futuros. Referências: ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Escuta, 1985. ALVES, M. A.; MEREGE, L. C.; SPINK, P. K.; TENÓRIO, F. G.; TREZZA, V. M. Apresentação. Fórum Organizações Sociais. In: Revista de Administração de Empresas. Vol. 48, nº 3, p. 61-63., jul/set, 2008. BOURDIEU, O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,1989. ______. El propósito de la sociología reflexiva (Seminario de Chicago). In: BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. Una invitación a la sociología reflexiva. México: Siglo XXI Ed., 2005a. p.101-300. ______. Esboço de Auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005b. BOURDIEU, Pierre; EAGLETON, Terry. A doxa e a vida cotidiana: uma entrevista. In: ZIZEK, Slavoj (Org.).Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 265-278. BRESSER-PEREIRA, Luis Carlos. Réplica: Comparação Impossível. In: Revista de Administração de Empresas.(RAE Debates) Vol. 45, nº1, p. 50-51, 2005. BUSATTO, Cezar. Governança Solidária Local: desencadeando o processo. Porto Alegre, Secretaria Municipal de Coordenação Política e Governança Local, nov., 2005. CARRION, Rosinha. Gestão Social: especificidade e práticas em discussão. In: JUNQUILHO, G.S.; BIANCO, M. de F.; BEHR, R. R.; PETINELLI-SOUZA, S. Tecnologias de Gestão: por uma abordagem multidisciplinar.Vol. 2, Vitória: EDUFES, 2007. COMIN, Flávio; BAGOLIN, Izete; AVILA, Rodrigo; PORTO JR. Sabino da Silva; PICOLOTTO, Volnei da Conceição. Pobreza: da insuficiência de renda à privação de capacitações. Uma aplicação para a cidade de Porto Alegre através de um indicador multidimensional. Porto Alegre, UFRGS, PPGE/FCE, 2006, 121 p. DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. http://rgs.wiki.br 15/16
  • 16. # Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações # EAGLETON, Terry. A ideologia e suas vicissitudes no marxismo ocidental. In: ZIZEK, Slavoj (Org.).Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 179-226. GOHN, Maria da G. Novas teorias dos movimentos sociais. São Paulo: Loyola, 2008. HEGEL, Geog W. F. Fenomenologia do Espírito. 4. Ed. Petrópolis, Vozes: Bragança Paulista, Editora Universitária São Francisco, 2007. LÖWY, Michael. Ideologias e Ciência Social: elementos para uma análise marxista.18. Ed. São Paulo: Cortez, 2008. MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. 2. Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972. MINAYO, Maria C. de S. O desafio do conhecimento. 5. ed. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1999. OBSERVATÓRIO da Cidade de Porto Alegre. História do bairro arquipélago. Porto Alegre: Observapoa: 2008. Distponível em http://www2.portoalegre.rs.gov.br/observatorio Acesso em: 28/07/2008. PAULA, Ana Paula Paes de. Administração Pública Brasileira entre o Gerencialismo e a Gestão Social. In: Revista de Administração de Empresas. Vol. 45, nº1, p. 36-49, 2005. ______. Tréplica: Comparação Possível. In: Revista de Administração de Empresas.(RAE Debates) Vol. 45, nº1, p. 52-53, 2005b. PREFEITURA MUNICIPAL de Porto Alegre. Governança Solidária Local: Porto Alegre, Cidade Rede. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Coordenação Política e Governança Local, 2005. SELLTIZ, C. et. al. Métodos de pesquisa nas relações sociais. São Paulo: EPU, 1965. TENÓRIO, Fernando G. Gestão Social: uma perspectiva conceitual. In: Tem Razão a Administração? Ensaios sobre Teoria Organizacional e Gestão Social. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2002. TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1995. ZIZEK, Slavoj. O espectro da ideologia. In: ZIZEK, Slavoj (Org.).Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 7-38. i Esta questão já havia sido levantada por Mannheim (1972) no início do século passado. O autor, utilizando a distinção de Schäffle, atribui à “administração” a ciência dos “negócios rotineiros de Estado” (laufendes Staatsleben), enquanto a “política” trata dos fatos que estão ainda em processo de transformação, cujas decisões dão origem a situações novas e singulares (p. 138). O autor propõe então uma Sociologia Política como sendo a ciência do processo e da transformação, “da prática e para a prática” (p. 196), que busque analisar o desdobramento das forças em conflito. ii Os documentos oficiais constam das referências, os demais são referidos no próprio texto de forma simplificada, citando-se apenas a organização/entidade que o produziu. http://rgs.wiki.br 16/16